123 – Fim da Caminhada e Regresso a Pequim
Visitei propositadamente esta parte da Muralha não reconstruída. Está deserta, no seu estado original. Em bruto, depois de tantos séculos de existência. Quem gostar de algo mais seguro e arranjadinho, pode escolher a parte mais visitada, já reconstruída. O guia Li Bo também organiza visitas a essa parte. Foi uma opção minha escolher esta zona – que se chama Jiankou.
Às 16 horas chegámos a uma pequena aldeia, a pé, onde o Li Bo comprou dois gelados e deu-me um. Mas eu tive receio da água com que o gelado é feito. É um gelado de gelo, não de creme. Se calhar não é água mineral. Pelo que o Li Bo acabou por comer o meu e o seu.
Rumámos então de volta a Pequim, no jipe. Foram 120 km para cada lado. Agora, entre as 16 e as 19h fizemos 120 km. Três horas para fazer 120 km. O trânsito é intenso. E é um domingo. Passámos o 5º anel de Beijing.
Foi um dia altamente produtivo, durante o qual bombardeei o Li Bo de perguntas desde as 8.30h da manhã, hora a que me apanhou no meu Hutong, até às 19h, hora a que voltou a deixar-me lá. Efetivamente o Li Bo teve uma paciência de santo e tentou responder a todas. Sobre tudo e mais alguma coisa. Nomeadamente sobre o salário mínimo, a idade de reforma, ou a segurança social. Ou sobre o Mao Tse Tung, com o Grande Salto em Frente (1958-1962) e a Revolução Cultural (nas décadas de 1960 e 70).
Não questionei o Li Bo sobre esses eventos propriamente ditos – creio que não há muito mais a dizer. A única coisa que ainda se poderá vir a saber é o número exato de mortos. Citando um artigo da revista Visão sobre a Revolução Cultural:
“Números? Não há. Pelo menos oficiais e rigorosos. Meio século depois, o regime de Pequim continua a tratá-los como um “segredo de Estado”. Sem acesso aos dados estatísticos da época, alguns investigadores arriscam estimativas a partir das “mortes anormais” registadas nos anuários locais e regionais. Essas estimativas apresentam discrepâncias enormes entre si, oscilando entre os cerca de 750 mil e os quase oito milhões de mortes. Usando dados de vários estudos, pode calcular-se uma média de três milhões de mortes. No total a Revolução Cultural deverá ter produzido 30 milhões de vítimas entre mortos, feridos, torturados, deportados e humilhados publicamente.”¹
Já sobre o Grande Salto em Frente, o número de mortos também nunca foi revelado. Citando um artigo do jornal New York Times, escrito pelo historiador britânico Frank Dikottër, professor na Universidade de Hong Kong:
“Até hoje, o partido tenta encobrir o desastre, geralmente culpando o tempo. Contudo, há registos detalhados do horror nos arquivos nacionais e locais do partido. O acesso a esses arquivos teria sido inimaginável mesmo há 10 anos, mas uma revolução silenciosa tem ocorrido nos últimos anos, uma vez que vastos documentos foram gradualmente desclassificados. De 2005 a 2009, examinei centenas de documentos em toda a China, viajando da subtropical Guangdong até à árida província de Gansu, perto dos desertos da Mongólia Interior. Os historiadores sabem há algum tempo que o Grande Salto em Frente resultou numa das piores fomes do mundo. Os demógrafos usaram dados censitários oficiais para estimar que 20 a 30 milhões de pessoas morreram. Mas dentro dos arquivos há uma abundância de evidências, desde minutas de comités de emergência, até relatórios policiais secretos e investigações de segurança pública, que mostram que essas estimativas são lamentavelmente inadequadas.
Ao todo, os registos que estudei sugerem que o Grande Salto em Frente foi responsável por pelo menos 45 milhões de mortes.
Entre 2 e 3 milhões dessas vítimas foram torturadas até à morte ou executadas sumariamente, muitas vezes por infrações menores. As pessoas acusadas de não trabalharem o suficiente foram espancadas e enforcadas; às vezes eram atadas e lançadas em lagos. As punições para as menores violações incluíam a mutilação e forçar as pessoas a comer excrementos.
Até hoje, há pouca informação pública dentro da China sobre esse passado sombrio. Os historiadores que têm permissão para trabalhar nos arquivos do partido tendem a publicar as suas descobertas do outro lado da fronteira, em Hong Kong.”²
Questionei sim o Li Bo sobre o que aconteceu aos seus pais, nessa altura. Eu já tinha perguntado o mesmo à guia em Yunnan. Ela respondeu-me que a sua família não foi afetada. Mas depois contou que os pais estudaram numa universidade em Xangai, e que foram enviados para o campo, perto de Xangai, para darem aulas. Estiveram lá vinte anos até finalmente regressarem. Reforçou que outras pessoas foram enviadas para muito longe, mas os seus pais não, ficaram perto de Xangai. Eu não insisti.
Relativamente aos pais do Li Bo, estes viviam em Pequim e foram enviados para o norte da China, para a Região Autónoma da Mongólia Interior. O Li Bo acabou por nascer aí, e era ainda criança quando os pais regressaram a Pequim. Vive há trinta anos aqui em Pequim, dedica-se à profissão de guia turístico na Grande Muralha, e já trabalhou em tempos em entidades governamentais. É casado com uma professora de música clássica ocidental (Beethoven e afins, sim), e tem um filho de 9 anos que toca piano. Mostrou-me orgulhosamente um vídeo do filho a tocar Mozart. Esteve de férias no Vietname e no Cambodja há poucos meses, e vai agora para os EUA onde tem bons amigos, contou. Recebeu recentemente um convite para dar aulas de chinês aí, e pondera passar a viver nos EUA com a família. Na sua atividade de guia turístico tem quatro meses de descanso no inverno, e como a mulher vai trabalhar um ano nos EUA, o Li Bo irá também e ponderam pôr o filho a estudar lá, mais propriamente no estado de Indiana. Mas também quer ir conhecer a Califórnia e outros locais.
Falámos de tudo e mais alguma coisa, e fomos parar também à religião muçulmana. O Li Bo mostrou-se indignado pelo facto dos muçulmanos não comerem porco e mostrarem repulsa pela carne de porco. Bom, e os chineses comem cão, disse-lhe eu. A comparação foi mais uma antítese do que qualquer outra coisa – certamente foi a repulsa em comer carne de cão que me fez lembrar disto. Então o Li Bo contou-me a história do restaurante que abriu em Pequim em 2005 e que vendia carne de cão. A população não aceitou e realizaram-se acérrimas manifestações à porta. Ao fim de uma semana, o dono do restaurante chorou e pôs-se de joelhos, implorando-lhes que o deixassem seguir o seu negócio. Todo o seu investimento no restaurante estava prestes a desmoronar-se. Mas os manifestantes não arredaram pé. O caso foi para tribunal, mas eram exigidas acusações contra cada uma das pessoas. O dono do restaurante não conhecia ninguém em particular. E as autoridades indicaram que as pessoas tinham o direito a manifestar-se e que portanto não podiam fazer nada. O restaurante acabou por fechar ao fim de um mês.
Uma atividade que o Li Bo leva a cabo – e de louvar – é a limpeza da Grande Muralha. Efetivamente fiquei abismada com a quantidade de garrafas de plástico vazias que se encontram ao longo da Muralha. Não há sensibilidade por parte dos chineses relativamente ao lixo. Acabam de beber a água, ou refrigerante, e deitam a garrafa para o chão. São muitas mesmo. Fere fortemente a beleza da Muralha. Então o Li Bo alia o útil ao agradável: reúne periodicamente grupos de estudantes universitários, organizando a recolha das garrafas vazias, ao mesmo que promove gratuitamente a sua atividade de guia turístico, além da própria Muralha como monumento histórico e património nacional e mundial.
O Li Bo negou que Pequim tem smog. Fez-me olhar para o céu e perguntou-me onde é que está o smog. Bom, desde que cheguei à China que está quase sempre nublado. É verão, é a altura do calor e das chuvas. Não sei se este céu cinzento que vejo é das nuvens ou do smog. No entanto os níveis de smog aumentam durante o Inverno, sobretudo devido ao carvão usado como combustível para aquecer as casas. Vejo uma notícia no jornal Público de que algumas melhorias foram registadas desde a implementação de regulamentação ambiental mais restrita nas empresas, a uma redução do consumo total de carvão para menos de dez milhões de toneladas em 2016, em comparação com os 23 milhões de 2013. Pequim registou, em 2016, 198 dias de céu azul, mais 12 que os registados em 2015³.
Questionei ainda o Li Bo sobre a idade da reforma e as pensões de reforma, ou a Segurança Social em geral, ou o que quer que exista na China. Os homens reformam-se aos 60 anos e as mulheres depende da profissão: as funcionárias públicas reformam-se aos 55 anos. As restantes mulheres que trabalham em empresas privadas reformam-se aos 50. E têm de ter um mínimo de 15 anos de descontos.
Que coisa maravilhosa, nem quero acreditar. Reformar-me aos 50 anos. Perguntei-lhe como é que posso ir trabalhar para a China, para poder reformar-me aos 50 anos. Aparentemente é difícil. É necessário obter a cidadania chinesa, e isso é difícil. Além de que teria de estar caladinha o tempo todo, nada de perguntar coisas sobre os desastres do grande Mao Tse Tung, sobre a morte do Prémio Nobel da Paz, Liu Xiaobo, e outros assuntos que tais. Reforma aos 50 a quanto obrigarias.
Sobre as pensões de reforma, o Li Bo referiu-me que os particulares como ele pagam um seguro e têm uma reforma mensal garantida. Intrigou-me, isto, e tentei aprofundar, nomeadamente perguntando pelos casos em que se vive até aos cem anos, ou mais. Se a reforma está garantida até mesmo ao final da vida – mas não percebi e não insisti. Também não quis melindrar o Li Bo. Não faço ideia se são questões delicadas. Para mim é uma questão pública, mas na China não sei. Deixo este tema para uma das próximas crónicas, na qual será aprofundado.
Finalmente, o Li Bo não sabe o que é o Euromilhões. Nem sequer existe coisa semelhante na China, aparentemente. (Onde a nossa conversa foi parar, sim… até mesmo a questões filosóficas sobre vivermos numa “grande gaiola”, disse eu. Isto a propósito de eu ir visitar o Jardim Zoológico de Pequim, no dia seguinte. Nem sei como é que a conversa foi parar aí, mas de certeza que foi pelo facto dos animais viverem em gaiolas, e nós também, à nossa maneira, nas nossas grandes gaiolas. Mas enfim, estas discussões filosóficas ficaram em Pequim com o Li Bo, o qual foi uma magnífica companhia durante este dia).
¹ Galope, Francisco (2016, 16 Maio). “Revolução Cultural chinesa começou há 50 anos”. Revista Visão. Página consultada a 2 Abril 2018,
<http://visao.sapo.pt/actualidade/mundo/2016-05-16-Revolucao-Cultural-chinesa-comecou-ha-50-anos>
² Dikottër, Frank (2010, 15 Dezembro). “Mao’s Great Leap to Famine”. The New York Times. Página consultada a 2 Abril 2018,
<http://www.nytimes.com/2010/12/16/opinion/16iht-eddikotter16.html>
³ Real, Francisca Dias (2017, 3 Janeiro). “Pequim: a cidade está novamente à sombra do smog”. Jornal Público. Página consultada a 2 Abril 2018,
<https://www.publico.pt/2017/01/03/ecosfera/noticia/pequim-a-cidade-esta-novamente-a-sombra-do-smog-1756925>