098 – Pedalando Debaixo de Chuva

Hoje foi o dia – em toda a viagem – que correu menos bem. E não foi por causa da chuva: esta foi apenas uma pequena contrariedade de muitas.

Fiz 5 km na bicicleta elétrica, até que desisti. Perdeu completamente os travões, é impossível conduzir isto. Ainda por cima estes primeiros 5 km foram feitos no meio do trânsito e com muita lama, nas estradas em obras. Antes que eu vá contra os carros por não conseguir travar, mais vale regressar já à minha bicicleta. Também é suposto fazer apenas as subidas na elétrica. Mas eu sei lá quando é que há subidas. Recordo que a guia não fala muito. Simplesmente vamos andando, eu nunca faço ideia do que me espera. Não há um plano inicial, uma explicação inicial, de manhã, antes de começarmos o percurso do dia. Arrancamos e pronto. Se me cansar, passo para o carro. A questão é que eu não me canso, nem quero passar para o carro. Hoje sei que vou para a Dali e que são 65 km. Tenho um programa de viagem com essa indicação.
Atenção que – deixo esta nota importante – a bicicleta elétrica não é suposto ser para mim. A bicicleta que eu contratei nesta viagem é a normal. Esta está a funcionar perfeitamente, sem qualquer problema. A bicicleta elétrica é da guia. Não foi essa bicicleta que eu contratei – e que em princípio é mais cara. Portanto não posso queixar-me, nesse aspeto. Funciona mal, paciência – volta à tua, Rute, e cala-te.

Já de volta à minha bicicleta. (Minha, salvo seja – a que aluguei na China). Se repararem na foto anterior, esta agora não tem o comando do motor, à esquerda. Na foto de cima vê-se que eu estava a utilizar o modo “Eco”, o mais suave. Ainda tentei conduzir com o motor desligado, mas a bicicleta é pesadíssima assim. O arranque então é mesmo pesado, parece que estou a puxar por um elefante. Ora no pára-arranca no meio do trânsito e da lama, é para esquecer. Nunca tinha usado uma bicicleta elétrica, foi a primeira vez, aqui na China, e ainda estou a conhecer o mecanismo. Ao pegar agora na minha bicicleta normal, sem motor, parece que estou a pegar numa pluma, tão levezinha a arrancar.

O motorista Nong Bu e a guia desapareceram. Seguiram à minha frente, e não os vejo há quase uma hora. Resolvi parar um pouco, espreitar uma das povoações deste sinal. Uma para a esquerda, oura para a direita. Bom, é mais prático virar já à direita. (Sempre a chover – eu com um casaco  impermeável, os calções de ciclismo e sandálias).

Um sem-abrigo. Tinha um cabelo enorme, com rastas. Uma figura insólita já aqui entre nós, na Europa, quanto mais numa povoação remota da China. Quis fotografá-lo de frente, mas a operação não foi fácil. Nem sequer consegui. Andar a correr atrás dele, a fotografá-lo, à velocidade a que ele ia, e com aquele pau na mão, era capaz de não ter bons resultados.

Retomei a estrada principal e continuei em frente. Estou no caminho certo, vejo a placa para Dali, o destino de hoje. Mas há um cruzamento, e manda as regras que nos encontremos nos cruzamentos. Continua a não haver sinal da carrinha com o motorista Nong Bu e a guia. A placa que indica “Dali” aponta para uma autoestrada, com quatro faixas em cada sentido, ademais. Ora de certeza que na bicicleta terei de seguir outra estrada. Telefonei à guia. Onde é que vocês estão?, perguntei-lhes.
É uma pergunta interessante, esta. Como se a explicação deles me ajudasse alguma coisa. Se fosse em Lisboa poderiam responder-me: estamos na Avenida da Liberdade, estamos no Saldanha, estamos no Rossio. Enfim, um local assim identificável. Agora na China interessa lá que eu faça uma pergunta destas.
Bom, o resultado foi percebermos todos que ninguém sabe onde cada um de nós está. Eles os dois devem saber perfeitamente onde estão, eu é que não sei – nem onde estou, nem onde estão eles. Mas em último caso sigo a placa para Dali e hei de chegar a Dali dentro de 38 km. A questão é que não quero ir pela autoestrada. Preciso que me indiquem um caminho alternativo.

Entretanto começa a chover torrencialmente. Copiosamente. Um dilúvio.
Tenho o telemóvel e o bloco de apontamentos, onde vou tirando notas durante a viagem, ambos fechados num pequeno saco com fecho hermético, na bolsa à cintura. Têm andado sempre assim, desde o início da viagem, pois as chuvadas são súbitas e inesperadas. Tenho também o passaporte dentro de outro compartimento desta bolsa, junto ao corpo, debaixo do impermeável.  Falar ao telemóvel exige aqui uma certa operação logística. Levantar o casaco impermeável, abrir o fecho da bolsa, tirar o saco plástico, abrir o fecho hermético do saco, tirar o telemóvel, voltar a pôr o saco na bolsa com o bloco de apontamentos dentro, e marcar o número no telemóvel. A água a escorrer-me pelo capacete e pela cara abaixo.

Primeira fase: passar o telemóvel a alguém, para que fale com o Nong Bu e se entendam sobre a minha localização.
Estava uma carrinha parada na berma da estrada, com uma mulher sentada no lugar do passageiro, e um homem cá fora, com o porta-bagagens aberto. Ele abrigado debaixo do porta-bagagens. Eu abriguei-me também. É assim a vida, de vez em quando abrigam-se pessoas debaixo dos nossos porta-bagagens. Estou outra vez um pinto encharcado, preciso de passar-lhe o telemóvel para ele falar com o motorista e a guia – nem hesitei, abriguei-me junto dele (os carros a passarem constantemente ao nosso lado). Nihao – disse-lhe eu. Olá. Tirei o telemóvel, marquei o número, passei-lho. Estão a imaginar a surpresa do homem. Ele falou com o Nong Bu e explicou-lhe onde eu estava. Reagiu rapidamente e ainda quis tirar uma selfie comigo. Claro que tiramos uma selfie. Sorri, espetei o polegar com o sinal de ok, e lá fiquei noutra selfie, toda molhada. Até lhes teria tirado também uma foto a eles, mas a chuvada torrencial não me incentiva a essas operações fotográficas dado que a câmera não é à prova de água.

E esperei vinte minutos abrigada debaixo de um toldo de alumínio, sentada numa pedra no chão – talvez uma paragem de autocarros ou de táxis, nem percebi. Há um grande movimento de pessoas e de táxis. Acho que nem são táxis, são carros privados que vêm buscar as pessoas. Talvez grupos de excursões.
O Nong Bu não há maneira de encontrar-me. Ainda tive de passar o telemóvel a outro rapaz, num pequeno grupo que ali apareceu, o qual se mostrou muito pouco desembaraçado, e que se calhar acabei por tratá-lo de forma um pouco dura. Estava especado a olhar para o telemóvel, a chover, o telemóvel a molhar-se e ele não se mexe, não reage. Só se ri e olha para os companheiros. Ai estes moços. Encosta o telemóvel ao ouvido e ouve, pá.

Eis que avisto o Nong Bu a conduzir a carrinha, a olhar à volta a ver se me vê. Chamei-o. E eis que o caminho para Dali é mesmo por ali, pela estrada de oito faixas. Chove torrencialmente e a guia pergunta-me se não quero passar para o carro. Não quero. Estou molhada, e molhada continuarei. Quero seguir de bicicleta. Não existe outro caminho? – perguntei-lhe. Não, respondeu-me. Fiz uma pausa. Olhei para baixo, para os pedais, para a estrada. A água já me pinga pelo queixo. Pensei. Não existe outro caminho.

Fiz uns seis quilómetros, mas o trânsito é infernal, este passeio não tem graça. Acedi e passei para o carro. Fiz o resto da viagem – 32 km – no carro, a ver as povoações a passarem ao lado – de ambos os lados da estrada. Queria tanto seguir no meio daquelas povoações, na bicicleta.

Claro que existem outros caminhos. Desde quando é que só há uma autoestrada a caminho de uma povoação, e a passar no meio de outras tantas. Há estradas paralelas. Há caminhos locais. Virei a descobri-los precisamente no dia seguinte, dado que vou ficar dois dias completos em Dali, além desta tarde.

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