094 – De Bicicleta por Montanhas e Vales… e a Diferença no Ratio entre Homens e Mulheres

A China tem muitos mais milhões de homens do que mulheres.
Falemos hoje deste tema.
Em 2020, estima-se que haverão 30 milhões de homens mais do que mulheres . As projeções para 2030 indicam que mais de um quarto dos homens chineses não se casarão.¹ Surge assim um problema grave, criado pelo desequilíbrio, que é o chamado Guanggun (literalmente “ramos nus”, ou os “homens que sobraram”).²
A corrida para encontrar uma mulher adequada – e conquistá-la antes de outro – levou alguns homens a envidarem grandes esforços para encontrar uma esposa. Gastam somas avultadas em medidas criativas, às vezes mal sucedidas, para conquistar uma mulher. Em 2015, um empresário chinês de 40 anos processou uma agência de encontros sediada em Xangai por não lhe encontrar uma esposa, após ter pago a essa empresa 7 milhões de yuans (1 milhão de euros) para realizar uma busca extensa. Num outro caso, um programador de computadores da cidade de Guangzhou comprou 99 iPhones como parte de uma elaborada proposta de casamento para a sua namorada. Infelizmente, ele foi rejeitado, com a sua humilhação exacerbada quando as fotos do evento foram amplamente compartilhadas nas redes sociais.¹

Dados do Gabinete Nacional de Estatística mostram que, no final de 2015, existiam 704 milhões de cidadãos do sexo masculino e 670 milhões de cidadãs do sexo feminino na China continental. Em média, 114 rapazes nasceram por cada 100 raparigas, em comparação com a média mundial de 103 para 107. Entre a população nascida na década de 1980, havia 136 solteiros para cada 100 mulheres solteiras e entre os nascidos nos anos 1970, o número de solteiros aumenta para 206.
Para evitar esta discrepância nos nascimentos, em novembro de 2002 a identificação do sexo fetal por razões não médicas, bem como os abortos seletivos após verificação do sexo foram oficialmente proibidos na China. No entanto, é difícil controlar as práticas devido a deficiências na regulamentação e também ao desenvolvimento da tecnologia.
De acordo com o objetivo estabelecido no Plano Nacional de Desenvolvimento da População (2016-2030), até 2020 a proporção rapaz-rapariga ao nascer deve ser igual ou inferior a 112 para 100 e a proporção em 2030 deve ser estabilizada em 107 para 100. Isso significa que serão necessários 13 anos para o índice voltar ao normal e, assim, portanto, o país tem que lidar com os homens sobrantes nascidos nas últimas três décadas, desde que foi implementada a política do filho único, e ainda os restantes dos 13 anos seguintes.²

Porquê esta diferença na quantidade de homens e mulheres?
Na crónica 63 falei do Hukou, e na crónica 78 falei da “política do filho único”. Ambos estão interligados e vão desembocar agora nesta problemática. A preferência ancestral das famílias pelos filhos rapazes remonta à grande dependência da agricultura na generalidade das famílias, que ainda hoje é regra no interior da China, embora com cada vez menos peso, e também à segurança que os filhos homens dão aos pais durante a velhice. Quando casam, as mulheres passam a ter como prioridade a família do marido, sem poderem muitas vezes dar apoio aos próprios pais. Se esta preferência era pré-existente, a política do filho único intensificou-a. Na impossibilidade de ter mais do que um filho, os casais tudo faziam para que fosse rapaz. Por vezes, os pais dão às filhas nomes como Laidi ou Yindi, que significam “traz um pequeno irmão”, colocando desde logo à primogénita o rótulo de indesejada.³
Mesmo o governo reconhece o problema e expressou preocupação com as dezenas de milhões de jovens que não encontrarão noivas e poderão recorrer a medidas drásticas como raptar mulheres, tráfico sexual, e outras formas de crime ou agitação social.⁴

A dificuldade dos homens em encontrarem uma esposa é mais aguda nas áreas rurais, mais pobres, dificuldades essas que são agravadas pelo facto das antigas tradições definirem que o marido deve oferecer um nível decente de segurança financeira antes de conseguir uma esposa.¹
Citando um artigo do jornal “The Guardian”:
Para Jin, que trabalha nas fábricas do Delta do Rio das Pérolas, o casamenteiro foi o seu segundo primo. “O meu primo trouxe [uma rapariga] para nos encontrarmos numa praça pública na aldeia, e depois deixou-nos sozinhos”, lembra Jin. “Alguns minutos depois, essa rapariga deixou claro que seria essencial eu possuir um apartamento, mas que ela poderia esperar até mais tarde por um carro. E para ela estaria bem se o apartamento não estivesse no centro da cidade, mas eu tinha que ter um depósito de pelo menos 200 mil yuans [cerca de 28.000€]”.

Em 2010, o principal sindicato endossado pelo estado entrevistou milhares de migrantes rurais em dez cidades em todo o país, concluindo que “o aspeto determinante da experiência dos migrantes” é o sentimento de solidão devido à falta de perspetivas românticas. Uma outra pesquisa descobriu que mais de 70% dos trabalhadores da construção civil (quase exclusivamente migrantes rurais) relataram a solidão emocional como o aspeto mais doloroso das suas vidas.
Liu tem 33 anos e é solitário. Quando era adolescente, deixou a escola para ajudar os seus pais no campo, mas depressa se aventurou para o sul, para Shenzhen, na fronteira com Hong Kong, na esperança de ganhar mais dinheiro. Quando eu o conheci, ele estava a trabalhar 12 horas por dia, seis dias por semana, a montar iPhones numa das fábricas da Foxconn (…).
Sem educação avançada, Liu é apenas qualificado para empregos inseguros e pouco qualificados. As longas horas e salários baixos tornam os aspetos práticos do namoro ainda mais assustadores. “Não é porque eu seja uma pessoa tímida. Eu simplesmente não tenho dinheiro suficiente para sentir-me confiante”, diz ele. “Quando um homem tem dinheiro, todas as mulheres se sentem destinadas a ser a sua namorada”.

Ora existe um vínculo óbvio entre homens jovens irritados e agitação social. Num Estado de partido único que valoriza a estabilidade social acima de tudo, essa crescente coorte de milhões de jovens desfavorecidos e sexualmente frustrados é um desenvolvimento indesejável.
A abolição do Hukou é crucial para superar a divisão rural-urbana. Ambos os governos centrais e locais remendaram o sistema, porém mais reformas são improváveis. Isso porque o aumento das oportunidades para os migrantes rurais significa necessariamente aumentar a concorrência para a classe média urbana estabelecida – eles próprios uma força social chave na estabilização da sociedade. Os líderes do Partido Comunista não eleitos e perenemente inseguros sentem que não podem arriscar a instabilidade adotando políticas sociais redistributivas significativas.⁵

Com esta diferença no ratio entre rapazes e raparigas, surgem inúmeras outras questões a nível social. O fardo financeiro para os homens também torna mais difícil para muitas mulheres encontrarem um parceiro. Por outro lado, um grande número de homens, em parte devido aos custos financeiros do casamento, optam por casar-se mais tarde. E quando eles se estabelecem, muitas vezes procuram mulheres mais jovens. As diferenças de idade de 10 a 20 anos ou mais são comuns em casamentos chineses.
Os próprios pais acabam por envolver-se e sofrer com a situação. Os pais consideram que são responsáveis ​​por ajudar o seu filho adulto a começar uma família. Eles pressionam o filho ou a filha a encontrar um parceiro, a namorar e a preparar-se para um casamento. “O ‘blind date’ (ou ‘encontro às cegas’) organizado pelos pais, ainda é muito popular”, diz Melinda Hu, que tem 32 anos e é solteira. “Os pais enfrentam grandes críticas sociais se a sua filha ou filho não se casar, de modo que normalmente os pais de uma rapariga estão ansiosos para deixar a sua filha ir a um encontro às cegas e casar-se antes de chegar aos 30.”¹
O mesmo se passa com os rapazes:
“Quando Liu voltou para sua aldeia de infância para celebrar o Ano Novo Chinês, os seus pais haviam arranjado uma tarefa já familiar e deprimente para ele: uma série de ‘speed dates’. Durante uma semana na província rural de Jiangxi, ele conheceu meia dúzia de potenciais esposas em encontros que ele sentiu como se fossem entrevistas de emprego. Liu espera passar pelo mesmo processo no próximo ano, sem muitas esperanças de sucesso”.⁵

Existem também os mercados matrimoniais ao ar livre. Em Xangai existe um dos maiores, onde os pais de adultos solteiros se reúnem todos os sábados e domingos do meio dia às 17h para trocar informações sobre os seus filhos. O principal objetivo é encontrarem um cônjuge adequado para estes. Os pais publicam anúncios manuscritos sobre os seus filhos solteiros indicando detalhes como a idade, altura, trabalho, rendimento, educação, valores familiares, signo chinês do zodíaco, e personalidade. Toda essa informação está escrita num pedaço de papel, que é então pendurado em cordas longas entre os anúncios de outros pais sobre os seus filhos. Os pais caminham conversando com outros pais para ver se há um ajuste harmonioso.⁶ Se ambos os pais encontrarem um par que pareça funcionar, eles trocam informações de contacto e tentam marcar um encontro às cegas entre ambos os filhos.

E no final, temos de ter em conta que mesmo que uma união se realize, as coisas nem sempre terminam bem. Casamentos precipitados podem levar a divórcios também apressados. Num município da província de Henan, 85% de todos os divórcios no período de 2013 a 2015 envolveram casais migrantes rurais. O governo manifestou a sua preocupação com as altas taxas de divórcio e os “casais temporários” – constituídos por indivíduos que se casam nas suas aldeias e depois regressam às cidades e formam outros relacionamentos aí.⁵

Efetivamente, à medida em que a China se torna mais rica e mais poderosa no primeiro mandato de cinco anos do presidente Xi Jinping, o país está a enfrentar uma mudança profunda: as taxas de casamento diminuem enquanto os divórcios estão a aumentar acentuadamente. A tendência, já prevalecente nas economias desenvolvidas, tem implicações muito mais graves para a China: necessita muito de casais para darem à luz mais bebés de forma a aliviar o envelhecimento rápido da população, bem como gerar compras relacionadas com a família, já que Pequim tenta manter o crescimento baseando-se no consumo. A queda da taxa de casamentos aumenta as incertezas de gastos (…) Os solteiros, sem dúvida, gastam menos do que os lares de famílias de casados, nomeadamente em eletrodomésticos, casas, e serviços relacionados com a família, levando as empresas a comercializar produtos mais pequenos e baratos, como frigoríficos e panelas elétricas de arroz, além de construírem apartamentos mais pequenos.
“Tudo isso permite que as pessoas vivam uma vida confortável sem se casar”, disse Alina Ma, analista sénior de estilo de vida na consultora Mintel. “Isso significa que ficam solteiros por longos períodos de tempo”.
“O casamento é mais sobre companheirismo agora”, disse Yu, professor assistente na Academia Chinesa de Ciências Sociais. “As mulheres podem obter isso escolhendo a coabitação também”.⁷

A modernidade está a apoderar-se da China. Enquanto as fomes pontuais e a permanente turbulência ensinavam as gerações mais velhas a valorizar a estabilidade acima de tudo, as crianças nascidas durante os anos de crescimento da China tendem a aumentar o grau de exigência. Criados numa dieta constante de filmes de Hollywood e telenovelas coreanas, a geração Y da China, ou seja, aqueles nascidos na década de 1980, começaram a perguntar-se se não haverá espaço para um pequeno romance nos seus relacionamentos.⁸
Lentamente tem havido uma mudança na forma como as pessoas se encontram e como os homens atraem as mulheres, começando a ser colocado atualmente maior ênfase no amor do que em considerações práticas como a segurança financeira. O namoro online está a crescer rapidamente na China, tal como em outras zonas, e aplicativos de mensagens como o WeChat são formas cada vez mais populares de conhecer pessoas. “O namoro na China começa a estar cada vez mais aberto e mais familiarizado com as formas dos países ocidentais nos últimos anos”, diz Jun Li. “As novas gerações têm mais opções e estão a seguir os seus corações em vez dos pais”.¹

Conclusão
Mas deixemos os namoros e os casamentos, e regressemos ao assunto inicial: a diferença nos ratios entre homens e mulheres. Qual poderá ser a solução para este problema?
Segundo Zhai Zhenwu, professor de Estudos Populacionais da Universidade Renmin da China, os especialistas concordam que a chave é mudar a preferência tradicional da população pelas crianças do sexo masculino e trabalhar no sentido da igualdade de género. A sensação de igualdade de género ainda é fraca atualmente. O preconceito tradicional contra as raparigas só pode ser alterado com a urbanização, a industrialização e a educação. “Precisamos educar a próxima geração e estabelecer o terreno para a igualdade de género”, diz Zhai. “A crise dos ramos nus não será resolvida até que a visão dos jovens em relação à procriação seja alterada”.²

Um cemitério.

Ela demorou uma eternidade a subir a estrada. Veio lá de baixo, lentamente, sempre a fixar-me. Estaria a ver se eu me ia embora, certamente. Mas eu tenho todo o tempo do mundo.

Elas estavam sentadas, à beira da estrada. Parei imediatamente a bicicleta. Ainda tive de voltar para trás, pois não consegui parar mesmo em frente. Vou a alguma velocidade, não estaco no momento. Dei meia volta, na estrada, a pedalar, e voltei para junto delas. Elas riram-se, cumprimentámo-nos, fizeram-me as habituais perguntas que eu não compreendo.

Fui vendo pequenas borboletas azuis, com cerca de dois centímetros de diâmetro. Pássaros brancos e negros, do tamanho de uma andorinha, com uma pequena cauda de penas. Pássaros castanhos um pouco maiores, e com uma crista castanha também.

Um túmulo isolado.


¹ Budden, Rob (2017, 14 fevereiro). “Why millions of Chinese men are staying single”. BBC. Página consultada a 19 Fevereiro 2018,
<http://www.bbc.com/capital/story/20170213-why-millions-of-chinese-men-are-staying-single>

² Jing, Liu (2017, 13 fevereiro). “30 million Chinese men to be wifeless over the next 30 years”. China Daily. Página consultada a 19 Fevereiro 2018,
<http://www.chinadaily.com.cn/china/2017-02/13/content_28183839.htm>

³ Ribeiro, João Ruela (2017, 30 Janeiro). “Depois de três décadas a impedir nascimentos, a China precisa de bebés”. Jornal Público. Página consultada a 19 Fevereiro 2018,
<https://www.publico.pt/2017/01/30/mundo/noticia/depois-de-tres-decadas-a-impedir-nascimentos-a-china-precisa-de-bebes-1760068>

⁴ “One-child policy” (s.d.). Wikipedia. Página consultada a 19 Fevereiro 2018,
<https://en.wikipedia.org/wiki/One-child_policy>

⁵ Wanning, Sun (2017, 28 Setembro). “My parents say hurry up and find a girl’: China’s millions of lonely ‘leftover men”. The Guardian. Página consultada a 19 Fevereiro 2018,
<https://www.theguardian.com/inequality/2017/sep/28/my-parents-say-hurry-up-and-find-a-girl-chinas-millions-of-lonely-leftover-men>

⁶ “Shanghai marriage market” (s.d.). Wikipedia. Página consultada a 19 Fevereiro 2018,
<https://en.wikipedia.org/wiki/Shanghai_marriage_market>

⁷ Wang, Yu (2017, 17 Outubro). “No One In China Wants To Get Married Anymore, And It’s Making Beijing Nervous”. Forbes. Página consultada a 19 Fevereiro 2018,
<https://www.forbes.com/sites/ywang/2017/10/17/no-one-in-china-wants-to-get-married-anymore-and-its-making-beijing-nervous/#481ce01caa0b>

⁸ Sheehan, Matt (2015, 4 Julho; atualizada 2017, 6 Dezembro) “Tinder Has Nothing on Shanghai’s Bustling Marriage Market”. Huffpost. Página consultada a 19 Fevereiro 2018,
<https://www.huffingtonpost.com/2015/04/07/welcome-to-the-shanghai-marriage-market_n_7018038.html>

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