072 – Chegada Vitoriosa

Estas gargantas – ou desfiladeiros – não são propriamente navegáveis. Encontra-se na internet alguma informação sobre isto, nomeadamente uma expedição sino-americana efetuada em rafting, em 1986, e que passou por aqui. Essa expedição visava percorrer todo o rio Yangtzé em rafting, e levavam com eles toneladas de equipamento, o que não facilitou a expedição. Pelo que leio, gerou-se uma competição com outras equipas de chineses, que tentaram ao mesmo tempo bater essa expedição de norte-americanos. Debaixo de um fervor nacionalista, os chineses queriam ser eles a navegar pela primeira vez o rio Yangtzé, desde o seu início, em grandes altitudes. Os rápidos são inimaginavelmente violentos, porém. Acabaram por morrer onze pessoas nesta história. Deixo um resumo e alguns links, para quem quiser saber mais. De facto é digna de um filme, esta aventura em rafting.

Resumo e fotos:
https://www.ancilnance.com/html/yangtze.php

Relato em 2016 de um dos sobreviventes chineses, Li Jing:
(Então com 27 anos, e na altura desta entrevista, em 2016, com 57 anos):
“Alguns relatórios sobre a expedição americana circularam recentemente nos media chineses. É a primeira vez que eu sei o que realmente aconteceu com a sua equipa. Fiquei um pouco chocado. Sob essa crescente atmosfera nacionalista graças à intensa cobertura dos media, fomos inconscientemente levados a competir com eles. Pessoalmente, entrei na equipa da expedição não simplesmente por patriotismo, mas fui motivado por uma curiosidade sobre o Yangtzé que começou na minha infância. Assim, quando houve a chance de subir este rio místico, aderi. No entanto, com a atmosfera competitiva a ficar mais forte, a natureza das descidas desviou-se do que eu pretendia originalmente. Olhando para trás, eu diria que foi um final trágico com tantos jovens que perderam a vida.
Eu fui educado nas falésias do cânion de Jinsha, na província de Sichuan. Ao longo do penhasco, corre o rio Jinsha, no extremo superior do Yangtzé. Os meus pais estavam sempre a avisar-me para não me aproximar da borda do penhasco, caso contrário eu poderia ser sugado pelo poderoso rio abaixo. Na memória da minha infância, o rio era um ser assustador, mas místico, porém não tive a chance de ver o que realmente era até que comecei a trabalhar na cidade de Panzhihua depois de terminar a faculdade, onde me formei em geologia. Em 1986, quando eu tinha 26 anos, juntei-me ao trabalho de preparação para as descidas do Yangtzé, levando-o como uma oportunidade preciosa para alimentar a minha curiosidade na infância. Mas, como eu disse, a expedição acabou por ser uma competição, em vez de uma viagem de pesquisa, como eu esperava. O ritmo foi rápido demais para uma pesquisa aprofundada. Tive que desistir de amostras de água e outros materiais coletados ao longo do caminho.”¹

Relato de um dos membros da equipa norte-americana, Richard Bangs:
(Descrevendo a morte de um membro da equipa, logo no início da expedição):
“A altitude desgastou os nervos e quebrou a já frágil saúde de alguns membros da equipa, mais particularmente [do fotógrafo] David Shippee. (…) O Dr. Gray diagnosticou-lhe pneumonia e doença de altitude. (…) David Shippee escreveu uma última carta para [a mulher] Margit: “Temos 3.200 quilómetros de água enlameada, mosquitos, cobras venenosas, cataratas e comida desidratada à nossa frente.” (…)

Naquela tarde, cerca das 15.30h, o céu negro rapidamente trouxe consigo uma tempestade de neve. Em poucos segundos, ninguém conseguia ver mais de quinze metros em qualquer direção. A neve acumulou-se nos raftings e nos coletes salva-vidas, e a temperatura caiu. Finalmente, a tempestade acabou. O céu ficou limpo tão rapidamente como se tinha eclipsado, e a temperatura subiu para 21° C. Mas a tempestade de neve ferrou em David Shippee, que agora se afundou numa recaída. Naquela manhã (…)  ocasionalmente foi tirando fotografias, mas os seus movimentos foram forçados e lentos. Após a tempestade de neve, ele ficou claramente angustiado, e foi necessário acampar.

Naquela noite, o médico ouviu os pulmões de David e ouviu os ruídos instáveis ​​que indicavam o excesso de fluido – um sinal dos estágios iniciais do edema pulmonar, uma forma muito séria de doença da altitude que pode levar rapidamente ao afogamento da vítima nos seus próprios fluidos internos. A única cura conhecida é a evacuação imediata para uma altitude mais baixa. Mas no plateau tibetano onde se encontravam acampados, a mais de 3.000 metros de altitude, o único caminho rápido para uma elevação mais baixa era por helicóptero.

Warren tinha um gerador portátil de 1.500 watts, ligou o rádio Icom da expedição pela primeira vez na viagem e tentou entrar em contacto com a sua equipa de estrada. Mas alguém se esqueceu de trazer a antena coaxial, e no início o rádio apenas cuspiu carga estática. Cerca de trinta metros de fio condutor foram apressadamente colocados entre dois remos, como uma antena e, finalmente,  vozes humanas ouviram-se, fracas.
Mas as pequenas vozes que saíam do rádio pareciam russas, e não havia possibilidade de comunicação.
(…) Warren “recusou-se a explicar porque não fez uma tentativa de pedir ajuda à China” (…) Warren tinha sido instruído com antecedência sobre como fazer contacto de rádio de emergência com a força aérea chinesa. Warren, por seu turno, disse que ele próprio verificou  Shippee, levando ao fotógrafo acamado uma xícara de chá quente na sua tenda e cobrindo-o com o seu próprio fato de sobrevivência. Shippee, ainda ansioso por agradar ao líder da expedição, pediu desculpas repetidamente por causar tantas dificuldades, mas Warren disse-lhe para não se preocupar, apenas para ficar bem.

Na manhã seguinte, Shippee estava fraco, quase inconsciente, cianótico e congestionado. A expedição teve que seguir em frente: a única maneira de baixar a elevação era o rio, embora fosse uma descida agonizantemente lenta. O Dr. Gray colocou Shippee no seu saco-cama, num dos barcos de rafting, com uma lona pendurada por cima para protegê-lo do sol ardente. O médico administrou-lhe antibióticos via intravenosa, bem como uma solução salina para prevenir a desidratação. Shippee começou a delirar; balbuciou que estava no Minnesota, no seu antigo salão de bilhar com os seus amigos. Ao meio-dia, um dos raftings apresentou um pequeno furo, pelo que o grupo teve de parar e acampar. (…) O David estava tão fraco que teve de ser levado nos braços para fora do barco. O Dr. Gray tentou aplicar-lhe uma máscara de oxigénio, mas Shippee mal conseguia respirar. Ao anoitecer, entrou em coma.
Às 23.24h, dia 3 de agosto de 1986, o vigoroso ruivo morreu.

A cerca de noventa metros das impetuosas águas, Gary Peebles chorou enquanto esfaqueava a terra com uma pá, cavando uma sepultura com metro e meio de profundidade, no solo duro do permafrost. Amanheceu com céu limpo, e os pássaros cantavam enquanto o sol se elevava e eles colocavam o corpo de David num saco amarelo impermeável, descendo-o no chão. Falou-se de levarem o corpo com eles, mas as questões de moral e saneamento levaram-nos a concordar num enterro na região selvagem.

Catorze dias depois, chegaram ao final da tarde de 13 de agosto à Ponte Zhimenda, a cerca de 25 quilómetros da cidade interior de Yushu. Aqui foram recebidos pela equipa de estrada, cujos sorrisos de parabéns se converteram em lágrimas ao saber das notícias da morte de David Shippee. Jan caiu nos braços do marido. Então ela contou a Ken as suas próprias notícias: vários rafters chineses haviam desaparecido algures, rio abaixo, entre Yushu e Batang, e foram dados como presumivelmente afogados.²

Relato de Jan Warren:
A mulher de Ken Warren (o líder da expedição, e a qual também participou na expedição, mas na equipa que seguia por estrada)  publicou um livro 25 anos depois, em 2011:
“Depois de transportar nove toneladas de equipamentos para a China, a expedição dirige-se para o ponto mais alto em qualquer expedição de um rio conhecida na história. Ao iniciar o rafting desde a nascente, a mais de 5.000 metros de altitude, nos grandes glaciares do Himalaias, até à cidade de Yibin, o objetivo era viajar ao longo dos 3.000 km de água inexplorada. Só o facto de chegar à nascente foi celebrado como um sucesso fenomenal para todos aqueles que entenderam que foram necessários anos de suor e lágrimas para chegar tão longe. (…)
Ao regressar aos Estados Unidos, Ken e Jan são levados pela controvérsia e submetidos a uma série de batalhas legais, incluindo um processo de morte injusto que se torna maior do que as furiosas águas que encontraram. (…)
Forçados ao silêncio por um emaranhado de batalhas legais, os Warrens não puderam refutar Richard Bangs. Mas agora, depois de vinte e cinco anos de silêncio, Jan Warren relata em primeira mão primeira mão os riscos assumidos na busca deste sonho.”³

Ao fundo, à direita, vêem-se pessoas em cima da rocha. Ali é o local dito “normal” para os turistas. Ali os autocarros param e descarregam-nos, e as pessoas passam em segurança por um corredor construído para tal. Portanto, se alguém quiser ir visitar a Garganta do Salto do Tigre e tiver receio de fazer este trekking mais ousado que o Nong Bu e eu fizemos, não se preocupem: muito certamente serão encaminhados para ali.


¹ Jing, Li (2016, 17 setembro).“Survivor of rafting disaster on the Yangtze says he still loves China’s mightiest river”. Página consultada a 17 Janeiro 2018,
<http://www.scmp.com/news/china/society/article/2019987/survivor-rafting-disaster-yangtze-says-he-still-loves-chinas>

² Bangs, Richard (2013, 15 outubro). “A Death on the Yangtze”, HuffPost. Página consultada a 17 Janeiro 2018,
<https://www.huffingtonpost.com/richard-bangs/a-death-on-the-yangtze_b_4099072.html>

³ Warren, Jan [ca 2011]. “1986 Sino-USA Upper Yangtze River Expedition”. Página consultada a 17 Janeiro 2018,
<http://sino-usariverexpedition.com/6.html>

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