063 – O Hukou

Hoje vou falar de algo muito importante na China: o Hukou.
Alguém já ouviu falar do Hukou? Muito pouca gente, creio. E no entanto este pequeno Hukou é fulcral na definição da estrutura social e económica na China.
Para explicar o que é o Hukou, nada melhor do que ouvir exatamente um chinês, e todas as suas experiências de vida. Comecemos portanto pela transcrição de um texto escrito por Jian Shuo Wang:

—————-

O Hukou é uma autorização de residência dada pelo governo da China. É emitido baseado na família. Todas têm um livrete Hukou que regista informações sobre os membros da família, incluindo o nome, data de nascimento, relação entre si, estado civil (e com quem é casado), morada, e também quem é a entidade patronal.
Toda as pessoas na China têm um Hukou.

O Hukou antes de 1980
Antes de 1980 o Hukou é extremamente importante. As pessoas são obrigadas a permanecer na pequena área em que nasceram (onde o Hukou foi emitido) e ficar lá até morrerem. Não se podem  mudar. Elas podem viajar, mas não há acesso ao trabalho, serviços públicos, educação ou mesmo alimentos noutras terras. É como visitar outros lugares com um tipo de visto B-1 (comercial) – pode-se visitar, mas não se pode trabalhar lá (é ilegal), não se pode ir para a escola (não se é aceite), não se pode ir ao hospital (sem um Hukou , não há possibilidade de ser tratado). Para a alimentação, naqueles velhos tempos, não é possível comprar comida, independentemente de quanto dinheiro se tenha. É preciso usar o Liangpiao (senhas de ração) para obter comida. O Liangpiao é emitido pelo governo da região onde o Hukou está registado, e após apresentação deste. Então, basicamente, pode-se sobreviver com o Liangpiao por alguns dias, mas não por muito tempo (especialmente levando em consideração que o Liangpiao emitido por uma província ou cidade não pode ser usado noutra província ou cidade).
Assim, basicamente, naquela época, sem um Hukou, as pessoas não podem deslocar-se. Existem algumas pessoas a deslocarem-se dentro do país, mas o seu status é praticamente o mesmo que os imigrantes ilegais nos EUA.
Alterar o Hukou de uma região para outra é muito difícil – tão difícil como obter um cartão verde nos EUA. É ainda mais difícil mudar de uma área rural para uma cidade – basicamente, há também dois tipos de Hukou, um é Hukou rural e outro é o Hukou urbano. Passar de rural para rural é mais fácil, mas mudar de rural para urbano é muito difícil – são precisos anos. Apenas em muito poucas situações ocorre a mudança: 1) ao entrar numa universidade na cidade, ou 2) ao casar com alguém na cidade. Em ambos os casos, é preciso aguardar um longo período de tempo para obtê-lo. Há um número de Hukous limitados abertos todos os anos, e é necessário competir para obtê-los.

O Hukou depois de 1980
Após o ano de 1980, muitas coisas mudam. Na prática, o Hukou não é aplicado tão rigorosamente como antes. Logo à partida o Liangpiao já não é exigido para comprar comida – basta dinheiro. No trabalho, ainda há uma enorme diferença para as pessoas com um Hukou ou sem um Hukou (o mesmo de hoje), mas é possível deslocar-se. Isto permitiu que muitos trabalhadores migrantes abandonassem as suas terras e fossem para as cidades onde são contratados para trabalhos de mão-de-obra intensiva. Trabalhos típicos como os das fábricas de têxteis, construção civil e também babysitters. No entanto, a educação dos seus filhos ainda constitui um grande problema. Estes não podem receber educação como as outras crianças; assim, em algumas regiões, frequentam uma escola criada apenas para pessoas sem Hukou (escola de trabalhadores migrantes). Pessoalmente, eu considero isto pior do que a velha política de “separação entre pretos e brancos”.

Hoje
Hoje o Hukou não desempenha um papel tão importante como antes, mas ainda existem muitas diferenças. Aqui estão alguns exemplos:
1) Seguro Médico. Por exemplo, as pessoas que vivem em Xangai sem um Hukou de Xangai não estão cobertas pelo seguro médico social. Se a pessoa adoecer, ele / ela precisa de pagar por si próprio(a) a despesa na totalidade. Isto já não é significativo, uma vez que existem cada vez mais seguros comerciais, os quais podem ajudar nesta matéria.
2) Trabalho. Muitos empregos só estão disponíveis para pessoas com um Hukou de Xangai. É discriminação, mas alguns empregadores têm que fazê-lo porque ainda há diferenças nos regulamentos.
3) Segurança. Guangzhou é um caso extremo. Há quatro anos, quando visitei Guangzhou, os meus amigos disseram-me para ter sempre o meu cartão de identificação nacional comigo. A polícia pode parar qualquer um a qualquer hora, na rua, para verificar o cartão de identificação. Se eles descobrirem que o endereço do cartão de identidade não está em Guangzhou, e a pessoa não tem uma autorização de residência temporária, têm o direito de deter a pessoa e devolvê-la ao seu local de origem. Esta é a prática comum em muitas cidades. Este regulamento foi abandonado apenas em 2003, quando um tipo chamado Sun Zhigang foi espancado até à morte durante o período de detenção.

O Hukou e eu
O Hukou teve um alto impacto em mim. Eu nunca frequentei o jardim de infância, já que na altura em que me mudei para a cidade, com a idade de 5 anos, ainda não tinha conseguido o meu Hukou. Demorou muito tempo até obtê-lo, e por isso o jardim de infância recusou-se a aceitar-me. Fiquei em casa até ter 7 anos e ter um Hukou. Se eu não conseguisse um Hukou naquele momento, o risco era de nem poder ir à escola primária. Esta é uma história real.
Da minha escola primária até ao final do meu ensino secundário (1982-1995), o meu Hukou está em Luoyang. Quando entrei na Universidade Jiaotong de Xangai, o meu Hukou foi transferido temporariamente para a Universidade, por quatro anos. Quando me formei, tive um período crítico no qual tive que encontrar um emprego local de alta tecnologia, e ser qualificado para o número limitado de cargos abertos para portadores de um Hukou. Os padrões são altos – é preciso estar entre os principais, com um bom registo, e ser contratado por empresas em determinada área. Isso funciona exatamente como funciona a imigração no Canadá ou nos EUA. De volta à minha história, obtive um Hukou de Xangai. Então transferi o meu Hukou da universidade para um lugar em Xangai (eu nem sei muito claramente onde fica esse lugar). Só depois de comprar o meu próprio apartamento três anos depois, eu pude transferir o meu Hukou daquele lugar para o endereço do meu apartamento. Esta é a história. A minha permissão de residente atual é em Xangai, no meu próprio apartamento.
Se eu for para Pequim, terei problemas. De acordo com o regulamento, preciso de obter uma autorização de residência temporária em Pequim. A “permissão de residência temporária” é um grande passo à frente no sistema original do Hukou, pois pelo menos posso obter alguma prova de que eu posso permanecer legal naquela cidade (antes, não havia como fazer isto). No entanto, ainda é uma coisa muito má. As pessoas não podem deixar de perguntar “Porque preciso eu de ficar TEMPORARIAMENTE no meu PRÓPRIO país?”

Desafios que traz
Embora o sistema atual seja amplamente considerado injusto e desumano, vejo o desafio que implica eliminar este sistema. Os benefícios que o governo dá às pessoas com diferentes Hukou são muito díspares, especialmente entre a cidade e a aldeia. Eu acredito que se for abandonado, rapidamente o caos virá – muitas pessoas a mudarem-se das aldeias para as cidades, e das cidades menores para as cidades maiores. Se não for bem feito, causará um grande problema. É exatamente como se todas as fronteiras do mundo fossem abertas e as pessoas se pudessem mover livremente de um país para  outro, de um dia para o outro. Poderíamos imaginar o que aconteceria. Como resolver este problema histórico é um grande desafio para esta geração na China.¹

——————-

Explicando então detalhadamente o que é o Hukou, bem como um pouco da sua história:
O Hukou é uma espécie de passaporte doméstico (abaixo está a foto de um), foi criado na década de 1950, após o estabelecimento da República Popular da China em 1949, e tem sido a fonte de muitas desigualdades sociais, sobretudo na distinção que faz entre os residentes rurais e urbanos. Os residentes urbanos receberam benefícios que variam desde a pensão de reforma, educação, ou cuidados de saúde; enquanto os cidadãos rurais foram deixados por sua conta. Os titulares do Hukou urbano receberam senhas de ração para as necessidades diárias, incluindo alimentos e têxteis, ao passo que os residentes rurais foram forçados a produzir tudo eles próprios. Os agricultores tiveram de formar parte de uma unidade de produção, produzindo cereais e outras colheitas, as quais eram compradas a preços baixos pelo Estado, o qual, por sua vez, os racionava entre os trabalhadores urbanos. Enquanto o Estado providenciava habitação na cidade, os indivíduos nas aldeias tinham que construir as suas próprias casas. O Estado investiu em educação, providenciou empregos e forneceu benefícios de aposentadoria para residentes da cidade e não forneceu nenhum destes serviços para os cidadãos rurais.

O objetivo do Hukou, ao ser oficialmente lançado em 1958, era o controlo da mobilidade da população, visando a estabilidade social e a modernização rápida. As áreas urbanas têm sido historicamente onde os regimes autoritários são mais vulneráveis: para combater isso, o governo central deu tratamento preferencial aos residentes da cidade, na esperança de evitar revoltas contra o Estado, especialmente nos primeiros anos, quando era particularmente suscetível à rebelião.²

Devido ao “Grande Salto em Frente”, porém, o qual visava o aceleramento económico, a demanda de mão-de-obra nas cidades tornou-se imperiosa. Ironicamente, registou-se uma precipitação de milhões de pessoas para as cidades nos anos de 1958 a 1960, em resposta à verdadeira explosão de empregos urbanos industriais e de construção. Em 1958, os líderes da China convidaram as províncias, os municípios e as regiões autónomas a emitir títulos de construção e a recrutar o trabalho necessário para promover a indústria ao serviço do crescimento acelerado. Isto provocou uma quebra geral do controle administrativo. Efetivamente deu-se o colapso dos controles fiscais e administrativos, e com as empresas a enfrentar intensas pressões para aumentar a produção, a força de trabalho industrial aumentou consequentemente para taxas sem precedentes. Era um período em que os “empregos procuravam as pessoas”. Bastava saber ler e escrever, e ser saudável, para se estar qualificado para um emprego em qualquer fábrica.
A partir de 1960, com o descalabro do “Grande Salto em Frente” a trazer a ruína e a mergulhar a nação na fome, o Estado iniciou então a implementação em grande escala do sistema Hukou, num esforço para recuperar o controle da economia e da sociedade. Considerando que a situação em 1958-59 tinha sido tal que dezenas de milhões de pessoas conseguiram romper os regulamentos para encontrar empregos urbanos, nas próximas duas décadas o sistema Hukou fez com que a migração urbana praticamente estancasse e exerceu um controle de ferro sobre as tendências residenciais e laborais quer na cidade, quer no campo.³

Chegamos então à década de 1980. Com as reformas económicas a ganharem ritmo, as cidades voltaram a precisar de mão-de-obra barata. E assim começou o que muitas vezes é descrito como uma das maiores migrações humanas de todos os tempos, à medida em que centenas de milhões de jovens, homens e mulheres do campo, foram despejados em fábricas e locais de construção nas cidades em expansão da China, sobretudo nas zonas costeiras.⁴ Por esta altura, estima-se que cerca de 200 milhões de chineses vivam fora das suas áreas oficialmente registadas e em muito menor elegibilidade para a educação e serviços públicos, vivendo, portanto, em condições semelhantes de muitas maneiras às de imigrantes ilegais ou como existia no regime do Apartheid, na África do Sul. Os milhões de camponeses que deixaram as suas terras permanecem presos nas margens da sociedade urbana. Constituem uma mão-de-obra de baixo custo, sem acesso aos benefícios sociais. Muitas vezes são culpados pelo aumento do crime e do desemprego, e sob a pressão dos seus cidadãos, os governos das cidades impõem regras discriminatórias. Por exemplo, os filhos dos trabalhadores agrícolas não podem matricular-se nas escolas da cidade, e ainda hoje têm de viver com os avós ou outros parentes para frequentar a escola nas respetivas regiões. Eles são comumente referidos como os filhos que vivem em casa. Há cerca de 130 milhões de crianças que vivem em casa, vivendo sem os pais, conforme relatado por pesquisadores chineses.²

Benefícios do Hukou? Também os há.
Os esforços do governo central para conter a migração têm sido um fator importante no rápido desenvolvimento da economia chinesa. Efetivamente o rigoroso controlo da migração para as zonas urbanas ajudou a evitar uma série de problemas enfrentados por muitos outros países em desenvolvimento. Por exemplo, o aparecimento de bairros de lata ao redor das áreas urbanas devido a um influxo maciço de indivíduos que procuram trabalho não tem sido um problema, nem têm surgido condições de saúde precárias devido à alta densidade populacional. E, independentemente das suas imperfeições, a capacidade do sistema Hukou de manter a estabilidade contribuiu para o crescimento económico da China.²

Nos últimos anos, foram tomadas medidas para aliviar as desigualdades promulgadas pelo sistema Hukou, com as grandes reformas anunciadas em março e julho de 2014, que incluíram uma disposição que eliminou a divisão entre o status agrícola e não agrícola do Hukou, bem como a redução nas restrições ao movimento para vilas e cidades com base no tamanho. Isto incluiu a abolição total das restrições nas cidades e nas pequenas cidades, a remoção gradual das regulamentações nas cidades médias, o relaxamento caso a caso nas grandes cidades e a manutenção do controle rigoroso nas maiores cidades da China.²

A transformação, todavia, tem sido dolorosamente lenta para os detentores do Hukou rural. O processo de passar os residentes rurais para residentes urbanos tem sido lento, já que as grandes cidades não estão dispostas a converter os migrantes rurais em detentores urbanos de Hukou.⁵ Em essência, o Hukou é um sistema de registo da população que o governo usa para  orçamentar as provisões destinadas  aos encargos sociais. O tratamento diferenciado associado aos vários status de Hukou tem implicações nas finanças públicas e na segurança social.⁶
Talvez por isso o plano de 2014 vise a transformação de apenas 100 milhões de migrantes rurais, menos da metade da população migrante rural. Veja-se um exemplo concreto: os migrantes qualificados em Xangai totalizaram 300 mil em 2016, mas apenas 26 mil conseguiram obter um Hukou de Xangai.⁵ O panorama ainda está longe de ser positivo. Em todo o país, quase dois terços dos trabalhadores migrantes na China não assinaram contratos de trabalho que lhes confiram benefícios adicionais.⁷

Hoje em dia os jovens migrantes rurais começam a optar pela área de serviços, e já não tanto pelas fábricas. Efetivamente quase 47 por cento dos trabalhadores migrantes foram empregados neste setor em 2016. Todavia esses empregos tendem a pagar menos ainda do que os das fábricas. Mesmo assim, alguns migrantes mais jovens escolhem empregos na área dos serviços porque são encarados como menos stressantes. “Eu costumava ser mais bem pago numa fábrica, mas o trabalho aqui é mais leve”, disse Liu Ning, de 23 anos, que trabalha numa loja de telemóveis.⁷

Atualmente o Partido Comunista reconheceu que a economia precisa de ser reequilibrada estimulando o consumo. No entanto, os atuais 282 milhões de trabalhadores migrantes nos centros urbanos da China constituem um obstáculo a esse objetivo. Estes constituem 35% da força de trabalho total da China, com cerca de 807 milhões de pessoas⁴. Os trabalhadores migrantes rurais ganham um salário médio mensal de 3.275 yuans (468€), cerca de metade do salário médio dos funcionários urbanos.⁸ Esta desigualdade de riqueza significa que uma proporção substancial da população da China, ou seja, uma classe crescente de trabalhadores migrantes, é impedida de desempenhar um papel relevante na segunda maior economia do mundo.

Um Hukou.


¹ Wang, Jian Shuo (2006, 10 Junho). “Hukou System in China”. Página consultada a 1 Janeiro 2018,
<https://web.archive.org/web/20070808024838/http://home.wangjianshuo.com/archives/20060610_Hukou_system_in_china.htm>

² “Hukou system” [ca. 2017]. Wikipedia. Página consultada a 1 Janeiro 2018,
<https://en.wikipedia.org/wiki/Hukou_system>

³ Cheng, Tiejun e Selden, Mark “The Origins and Social Consequences of China’s Hukou System”, The China Quarterly, No. 139 (Sep., 1994), pp. 644-668 [versão online], Published by: Cambridge University Press on behalf of the School of Oriental and African Studies. Página consultada a 1 Janeiro 2018,
<http://www.urbanlab.org/articles/China/state%20and%20power/Cheng%201994%20-%20Hukou%20origins%20and%20consequences.pdf>

⁴ “Migrant workers and their children” [ca. 2017]. China Labour Bulletin. Página consultada a 1 Janeiro 2018,
<http://www.clb.org.hk/content/migrant-workers-and-their-children>

⁵ Hsu, Sara (2016, 28 Dezembro). “China’s Urbanization Plans Need To Move Faster In 2017”. Forbes.  Página consultada a 1 Janeiro 2018,
<https://www.forbes.com/sites/sarahsu/2016/12/28/chinas-urbanization-plans-need-to-move-faster-in-2017/#14a01e3374db>

⁶ Li, Bingqin (2017, 19 Maio).“China going nowhere on Hukou reform”. East Asia Forum. Página consultada a 1 Janeiro 2018,
<http://www.eastasiaforum.org/2017/05/19/china-going-nowhere-on-hukou-reform/>

⁷ Hancock, Tom (2017, 3 Setembro).“China’s migrant workers feel pinch as Beijing pulls back on wages”. Finantial Times. Página consultada a 1 Janeiro 2018,
<https://www.ft.com/content/0383433e-8ca0-11e7-a352-e46f43c5825d>

⁸ “Employment and Wages” [ca. 2017]. China Labour Bulletin. Página consultada a 1 Janeiro 2018, <http://www.clb.org.hk/content/employment-and-wages>

<< >>