Dia 31 – O regresso

Hoje os responsáveis da residência artística marcaram-me um táxi partilhado para as 15h30. É cedo, eu disse-lhes. São duas horas até Yerevan, e depois meia hora de táxi até ao aeroporto. Às 18h estarei no aeroporto e só tenho o voo às 22h45. Mas eles responderam-me que mais vale jogar pelo seguro. Eu acedi, de facto é melhor eu ir para Yerevan cedo, sabe-se lá o que pode acontecer; eu até já fico nervosa cada vez que tenho de apanhar um táxi partilhado.
Passei a manhã ocupada a fazer as malas.

São 5h58. Dormi sete horas entre as 22 e as cinco. Mas só me levantei agora, quando começou a amanhecer.

A habitual agitação matinal dos cães de Mush 2. Este chamei-o do 5º andar, mandei-lhe beijinhos.

Às sete da manhã começou a chover muito.

A lavar os lençóis, para o próximo artista.

Eu tenho que ir à loja das bicicletas repor o selim original da bicicleta. São 2,1 km até lá. E estava a ver que nunca mais parava de chover. Desta vez não vou maçar o Vahagh (da crónica 2) com estas coisas, agora já conheço tudo em Gyumri. Avisei-o disto – que eu vou tratar da reposição do selim, e o Vahagh respondeu-me que está em Yerevan, que recebeu uma chamada do ministro (não me disse qual, mas há de ser o da cultura) e teve que ir para Yerevan, e por isso também não pode visitar a minha exposição.

Os bombeiros.

Vim a saber que a artista do apartamento ao lado, que chegou antontem, também adoeceu logo com o frio. Quando eu fui levar a bicicleta à oficina, cruzei-me consigo e com o seu companheiro nas escadas do prédio: eles iam visitar a Fortaleza Negra, e dar uma volta pelo centro de Gyumri, mas tiveram que regressar porque a Boglárka começou a sentir-se pior. Ontem passaram o dia fechados no estúdio, com ela doente. Este tempo das montanhas, em altitude, é muito agreste. E eles puseram o aquecimento do estúdio a funcionar, claro. Cá para mim eu e a Boglárka não fomos as únicas a ficar constipadas, logo à chegada: todos os artistas que aqui chegam, habituados a outros climas e mais sensíveis ao frio, devem constipar-se. O táxi partilhado chegou às 15h45. O Gergő, companheiro da Boglárka, saiu para ir ao supermercado buscar água, e acabámos por cruzar-nos novamente nas escadas do prédio, e ajudou-me a descer as malas pequenas, e eu desci a grande. Já foi uma bela ajuda, porque eu tenho uma dúzia de malas pequenas. Depois ficámos a falar um pouco na rua, enquanto o táxi chegava e não chegava. A Boglárka agora tem que ficar no estúdio, quente, para recuperar. A sua residência é apenas de uma semana. O taxista, quando chegou, percebemos logo que é dos antipáticos. Nem saiu do carro, e apontou com muito maus modos para a minha bagagem. Eu e o Gergő a olharmos para ele. Querem ver que eu fico em terra?… Eu liguei imediatamente ao Momik, um dos responsáveis da residência artística, que está em Yerevan, e pus os dois a falar ao telefone. O Momik explicou ao taxista que eu vou pagar outro bilhete por causa da bagagem. A viagem custa 1500 drams (3,57€) e eu vou pagar 3000. Depois eu pedi para colocar a mochila grande, laranja, também junto à mala, e o taxista não queria, eu tinha que ir com ela no meu colo, ou nos meus pés. Mas lá acedeu, com maus modos. A bagagem foi no banco de trás – sem ninguém. Este táxi só tinha três passageiros: um à frente; eu e o segundo passageiro no segundo banco; e o terceiro banco, atrás, só com a minha bagagem. Mas eu não podia lá por a mochila, nem pude colocar mais nada, tive que vir as restantes malas todas coladas a mim. Tenho a mala da máquina fotográfica, tenho um saco com água e comida, tenho a mochila azul às costas, tenho a bolsa da cintura, que está bem pesada, e tenho o quispo na mão. É uma viagem de duas horas, eu podia ir mais confortável, sem esta tralha toda à minha volta. Mas qual quê. Estes táxis partilhados entre Gyumri e Yerevan são um autêntico pesadelo, volto a repetir. Mas atenção: não são todos os taxistas. Eu mostrei vários, ao longo destas crónicas, perfeitamente profissionais, corretos, e alguns até simpáticos. O taxista Aram não se despediu de mim com um toque de punhos? E conversámos um pouco, dentro do possível, com o tradutor Google, enquanto esperávamos pela outra passageira, na crónica 24. O taxista Victor foi de grande profissionalismo e educação, na crónica 16. O taxista da crónica 17, que me trouxe a Mush, não brincou comigo, em inglês e tudo?, e no final despedi-me de si com um aperto de mão. Não são todos maus, portanto, é apenas uma ala que não gosta dos turistas e trata-os com extremo desrespeito. Tornou-se muito stressante, cada vez que tinha de deslocar-me, e não foram poucas as vezes. Recordemos que o motorista da marshrutka para Goris, na crónica 24, também não me deixou colocar o saco na parte de trás da viatura, onde os outros passageiros estavam a deixar as suas coisas, inclusive sacos iguais ao meu. Eu tinha que ir com o saco ao colo, ou aos meus pés, numa viagem de 4 horas. E efetivamente fui com ele aos meus pés.

O táxi partilhado onde eu fui.

São 17h51. Eis a paragem de táxis partilhados em Yerevan, junto à de estação de metro de Barekamutyun. Local da minha tortura. Até estou com um ar esmorecido. A paragem não tem infraestruturas próprias: estamos numa rua normal, não há bancos onde as pessoas se possam sentar enquanto esperam, e os carros estão parados na rua, estacionados entre os outros carros de quem mora ou trabalha aqui. Enfim, por esta altura, na 31ª crónica (ou 32ª, se contarmos com a introdução) já todos perceberam que os transportes são um ponto fraco, na Arménia. Eu já tive noutros países também sem transportes públicos, nomeadamente em África – em São Tomé e Príncipe. Andei praticamente todos os dias em táxis partilhados, conforme mostrei nessas crónicas. E eu sempre com uma bicicleta, nessa altura. Os taxistas santomenses trataram-me sempre bem. Curiosamente, enquanto eu aqui estava, à espera do Momik, passou o taxista Aram. Eu cumprimentei-o imediatamente, claro, e voltámos ao seu cumprimento descontraído de toque de punhos (ou seja, ele com o punho fechado, batendo no meu punho fechado também). O Momik Vardanyan, que já tinha aparecido na crónica 1, entretanto chegou. Passei-lhe as chaves do estúdio. São agora 6 da tarde e é muito cedo para eu ir para o aeroporto. O meu voo foi atrasado uma hora, ainda por cima; recebi um email e um sms a avisar-me que foi alterado para as 23h45. O Momik pergunta-me se eu quero ir para o estúdio da Art Basis, aqui ao lado, onde estive no 1º dia. Mas terei que ficar lá sozinha, porque ele tem que se ausentar: a Mary veio de urgência da Alemanha, disse-me, por causa do falecimento da sua mãe, e o Momik vai agora para algo ligado ao funeral, não percebi a palavra. É chocante e lamentei o sucedido. E assim optei por ir para o aeroporto, ao menos lá tenho cafés e pessoas para ver, sempre há movimento. Neste momento o Momik tem o meu telemóvel nas suas mãos porque está a ajustar no mapa do Yandex Taxi a minha localização. Eu chamei um táxi para o aeroporto, mas a app estava a dar outra localização minha, e assim o táxi não me encontraria. Também houve uma dúvida sobre se eu hoje teria internet ou não, no telemóvel, porque o cartão é válido por 30 dias. Hoje é o 31º dia que eu estou na Arménia. Mas continuo com internet. Se eu não tivesse internet, o Momik chamar-me-ia ele próprio um táxi. Este taxista foi tão educado, tão correto, tão cuidadoso comigo – queria eu pusesse tudo no porta-bagagens, para nada me incomodar no lugar da frente; e depois durante a viagem baixou-me a pala para eu não ir com o sol nos olhos – eu já não estou habituada a estas delicadezas, depois dos táxis partilhados, e estranhei, e devia ter-lhe tirado uma fotografia de recordação, como tirei aos outros taxistas em Yerevan, quando lá andei a passear. Cheguei ao aeroporto às 18h40. Faltam cinco horas para o meu voo. Aquele saco e aquele portátil não são meus – são da rapariga que me tirou esta foto. Eu não levei o meu portátil. Até hoje nunca levei o computador, nas minhas viagens. Esta residência artística era para pintar e viajar, não para estar agarrada ao computador. São 21h12. Aqui gerou-se grande tumulto dentro do aeroporto: houve gritos de mulheres e cânticos, e um homem dos seus 25/30 anos aos gritos com elas. Eram muçulmanos, turistas eventualmente. Está toda a gente a olhar, eu inclusive, a tentarmos perceber o que se passa. Pelo que eu entendi, as mulheres estavam a fazer frente a um homem, pareceu-me uma manifestação de emancipação das mulheres, que cantaram inclusivamente, e o homem enervadíssimo aos gritos com elas. Ainda durou uns quinze minutos. Não apareceram seguranças nenhuns. Entretanto envolveu-se outro homem, que estava contra o que gritava, e começaram a lutar. Mas outros homens, passageiros do aeroporto, separaram-nos imediatamente. Não apareceu um único guarda. Eu fiquei relativamente tranquila, porque para estarem aqui dentro, na zona dos “gates” de entrada para os aviões, já passaram pelos raios-x e não têm armas consigo. O aeroporto de Yerevan é este, pequenino, só tem 6 gates. E faltam duas horas e meia para o meu avião. Agora é que eu devia estar a chegar ao aeroporto. Mas não estive parada, de facto comecei já a trabalhar nestas crónicas. A introdução, meus amigos, posso dizer-vos que foi preparada nestas horas que passei nos aeroportos – neste e no de Colónia, na Alemanha, onde farei escala. Eu vou ditando os textos ao telemóvel. Nem me apetece escrever, dito. Para isso preciso de internet, e por isso só preparei o texto nos aeroportos, e não dentro dos aviões. Ninguém fala português, por aqui, não percebem nada do que eu estou a dizer.

O voo partiu de Yerevan 1h25 atrasado, eram 00h10. Da Eurowings, uma companhia aérea alemã de baixo custo, subsidiária do grupo Lufthansa. Para cá eu vim na Lufthansa, para lá vou na Eurowings. O voo durou 4h50 e fiz escala no aeroporto de Colónia/Bona. Aterrei na Alemanha às 3 da manhã, hora local.

O próximo voo, para Lisboa – que é este avião desta foto – era às 6h50, com a duração de 3 horas, e a aterrar em Lisboa às 8h55 da manhã. Mas atrasou-se 1h15 e só partiu às 8h05.
Como podem calcular, esta viagem foi uma tortura lenta. Por esta altura eu já não ditava nada, eu simplesmente cabeceava de sono. Desde que saí do estúdio, em Mush, até que entrei na minha casa, em Lisboa, passaram-se 24 horas. Viajar pode ser muito bom, mas esta parte é uma estopada.
Não serviram nenhuma refeição a bordo, nos dois voos. Quem queria comer, tinha que ver o menu, escolher e pagar.

Mas vamos ao que interessa: veem aquela menina pequenina de casaco cor-de-rosa, junto às escadas do avião? Irá sentada ao meu lado.

Eu não sei o que se passou, mas deram-me o primeiro lugar do avião, na classe executiva. No aeroporto de Yerevan não conseguiam identificar a minha reserva, tive algum tempo à espera, com a senhora à minha frente a mexer no computador, até que ela chamou um colega para verificar o que se passava. Não querem que eu me vá embora da Arménia, vou ficar aqui retida?… E depois deu-me este bilhete, com este lugar. Este lugar já veio reservado desde o check-in em Yerevan, por conseguinte. Está bem. Estes lugares na classe executiva são mais caros.

E este é mesmo o meu colo. Fui invadida de bonecos da menina de cor-de-rosa.

Mas estávamos em plena operação de dominação daquele leão rugidor de chucha, de 14 meses de idade. A partir dos 13 meses, as crianças têm que ir sentadas no seu próprio lugar, com cinto de segurança. Quem é que a convence a deixar o colo da mãe? Chora desalmadamente e parece uma enguia a fugir por debaixo do cinto. Veio uma hospedeira tentar ajudar, éramos três a tentar acalmar o leão rugidor de chucha, e a metê-lo naquela cadeira, com o cinto de segurança posto. O avião não pode descolar sem a menina estar ali sentada durante a fase de levantamento. Depois do voo levantar, ela pode voltar para o colo da mãe, mas agora não. São regras e a hospedeira disse que não podem desobedecer. Então eu brinquei com a chucha dela, brinquei com os bonecos, sentámos os bonecos no lugar dela e pusemos-lhes o cinto de segurança, para ela ver como é (a mãe em pé, entretanto – e a menina ia no meio, mas a mãe depois mudou-a para a janela). E lá conseguimos distraí-la com esta brincadeira toda, e a hospedeira trouxe aquele livro com lápis, para ela riscar, e enquanto estava entretida, a hospedeira pôs-lhe o cinto, sem ela dar conta. E ali ficou. O avião levantou voo e ela adormeceu, já nem foi preciso voltar para o colo da mãe. Ela e eu – eu também adormeci e só acordei com o aviso nos altifalantes de que vamos aterrar. Ou seja, a mãe – que se chama Michelle Tongers, é tenista, e vai jogar num campeonato internacional de ténis, em Lisboa, imagine-se – é uma tenista famosa! – foi descansada o tempo todo, ninguém a maçou neste voo. A Michelle tem o marido e outra colega de equipa sentados mais atrás, neste avião.

Lisboa à vista!

Ao chegar a casa, quando finalmente descansei, fui pesar-me. Estou com o mesmo peso de sempre: 55 kg. Há alguns anos que peso 55 kg, o peso tem estado estável e assim continua. Também liguei o rádio, na minha habitual estação da Antena 2, de música clássica. Que saudades tenho de ouvir música. Eu levei o ipod para a Arménia, mas não é a mesma coisa ouvir nos fones, e os fios não dão jeito, enquanto pinto. Da próxima vez tenho que levar a minha coluna portátil para ligar ao ipod e pintar a ouvir música, pelo estúdio inteiro.
Ainda voltei com alguns figos e nozes, e até um bocadinho de um chocolate que levei para lá. Foram passear à Arménia e voltaram. Os baklavas da Milena também vieram comigo e ainda comi dois pelo caminho. Enviei-lhe uma mensagem, já em Lisboa, com a foto dos baklavas em cima da minha mesa, com vista sobre Lisboa.
Tirando as atribulações com os táxis partilhados, esta viagem foi memorável e trago comigo muito boas recordações das magníficas aventuras de bicicleta, das pessoas com quem eu me cruzei e que me receberam tão bem, da rica história da Arménia – e também tão triste, nos tempos modernos, com o genocídio de 1915, que marcou para sempre a história do país, e posteriormente o terramoto de 1988.

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