Dia 27 – Dia inteiro de estúdio

Hoje é sábado, 27 de julho de 2024.
Dormi umas sete horas, um pouco agitadas; acordei às 8, mas levantei-me às 8h40.
Depois do silêncio das montanhas de Halidzor, estranho regressar a esta estrada principal de Mush 2, com um trânsito infernal.
Dão chuva para hoje e para amanhã. A partir das 15 horas, hoje. Depois dão muito sol e calor, para a semana. Basta eu ir-me embora para começar a fazer sol.
Na segunda e terça-feira farei uma exposição das minhas pinturas, aqui no estúdio. Hoje é dia de começar a convidar as pessoas.

São 9h12.

Nem tirei fotografias entre o pequeno-almoço e o almoço, hoje, mas andei sempre ocupada. Tomei um banho muito demorado, arrumei a roupa que estava no estendal, e retomei as pinturas.
Encomendei novamente o prato “chanah”, por telefone, o que eu tinha tentado encomendar na crónica 23, mas enviaram-me outra coisa por engano. Foi hoje que me atendeu uma rapariga que gritou “English no!” e desligou-me o telefone na cara. Depois alguém do restaurante ligou-me de volta e perguntou-me o que eu queria. Inicialmente não compreendia o que eu queria, mas foi à internet verificar e percebeu, disse-me o preço e tudo: 1450 drams. Eu confirmei. E então a rapariga disse-me que esse prato não está disponível. Eu fui ver novamente o menu e escolhi “chakhobili”, 1100 drams (2,62€). A rapariga informou-me que a entrega leva 40 minutos.

Recordemos o que escrevi na crónica 21:
Chakhobili é um prato tradicional da culinária da Geórgia, conhecido por ser uma espécie de guisado de frango com tomates e especiarias. Geralmente é feito com frango, cebola, alho, tomates, pimentões, coentro, vinho e especiarias como paprica e pimenta. O chakhokhbili é um prato saboroso e aromático, com um toque adocicado dos tomates e uma combinação de temperos que o tornam muito apetitoso. É comumente servido com arroz ou pão.

Levou uma hora, e o motorista, diferente da outra vez, pediu-me para eu enviar a minha morada para o seu próprio WhatsApp. Eu tirei uma fotografia ao prédio e sentei-me lá em baixo à espera. Ele chegou em cinco minutos. Que rapaz desembaraçado, este, que maravilha. Ele avisou-me, pelo WhatsApp, que iria chegar num Mercedes. Um minuto antes chegou outro Mercedes que me perguntou se fui eu que o chamei. Era um táxi, pelo que percebi. Eu disse que não, e fiz o sinal de comida, com a mão a meter na boca, para ele perceber que eu esperava uma entrega de comida. Que confusão de Mercedes.
Na fatura vem o nome que eu encomendei, mas não vieram asas de frango, pelo que percebo é porco. Ou então galinha, e caseira, com carne rija, como é próprio das galinhas caseiras. Nós hoje estamos habituados a comer frango cuja carne se desfaz, é uma tristeza o que fazem aos animais para criação rápida.
Não consegui perceber, portanto, que carne é esta, só sei que não são asas de frango. Muito picante, muito saboroso, com forte sabor a coentros. A massa fi-la à pressa, inesperadamente, quando percebi que o prato chegou sem acompanhamento. Esta massa já estava no armário da residência, alguém a deixou. De qualquer forma eu ainda tenho o esparguete que comprei no supermercado.

E finalmente, os bolos folhados que a Milena trouxe, para nós todas lancharmos, na visita da crónica 23: os bolos chamam-se “baklava”. O Chat GPT diz-me o seguinte:
Os baklavas são uma sobremesa tradicional muito apreciada na Arménia, bem como em vários países do Médio Oriente, dos Balcãs e do Cáucaso. Embora seja mais comumente associado à Turquia e à Grécia, a Arménia tem a sua própria versão desta iguaria, que reflete influências culturais e históricas únicas. O recheio é tipicamente composto por uma mistura de nozes, amêndoas ou pistácios, que são triturados e misturados com açúcar e especiarias, como a canela, e essa mistura é espalhada entre as camadas de massa filo. Depois de assado, o baklava é generosamente regado com um xarope doce feito de açúcar, mel, água e, por vezes, limão ou água de rosas. Este xarope é o que confere ao baklava a sua textura húmida e o seu sabor distintivo.

Posso dizer-vos que estes bolos são uma delícia e agradeci novamente à Milena, hoje, por WhatsApp, a sua bem escolhida oferta.

Fui ao supermercado comprar três litros de leite, e estas almas estão lá sempre deitadas, à porta. Aqui em Mush 2 os cães de rua não têm ar de cães de rua, mas são de rua. São das pessoas, e vivem na rua, parece-me que posso descrever a coisa assim.

Finalmente apeteceu-me introduzir o verde nas minhas pinturas, nesta residência artística. Se repararem, é a primeira vez que o faço. Usei um amarelado, e uma mistura que ficou amarelada-esverdeada, mas nunca o verde puro. Nunca tive vontade de pintar com verde, aqui, uma cor que me traz poderosas recordações de viagens anteriores, nomeadamente às florestas tropicais de São Tomé e Príncipe, ou às verdejantes ilhas vulcânicas dos Açores. Após essas duas viagens (uma em 2019, outra em 2020), passei por um “período verde”, e comentei isso na minha dissertação de mestrado, em 2022. Escrevi nessa dissertação, dedicada ao tema de “Artistas-Viajantes”:
“Revendo as pinturas de anos anteriores, nunca a cor verde tinha sido usada como cor principal, ou mesmo com particular destaque. Fazendo a contagem de obras com uma presença maioritária da cor verde, realizadas no decurso dos dois anos deste mestrado (ou seja, logo após aquelas duas grandes viagens), contam-se vinte e duas ao todo. A maioria está ligada ao tema das viagens e remete para uma crónica específica, mas não só: intercaladamente fui usando o verde noutros temas não ligados a viagens. (…) Todas as pinturas verdes são reveladoras da influência que estas duas últimas viagens exerceram, sendo que a presença intensa da cor verde ativa todo um conjunto de memórias, sensações e sentidos. Não se tratou de ver imagens na internet, ou de ler livros: são vivências, cheiros, trilhos verdes percorridos.”¹
E após o meu regresso das silenciosas e verdejantes montanhas de Halidzor e Tatev, finalmente apeteceu-me ver verde nas minhas pinturas, novamente.

Parei de pintar às 17h30; tenho de começar a convidar as pessoas para virem segunda e terça-feira à exposição.
Encontrei a vizinha do 4º andar – Hmik, à saída do supermercado. Viemos a caminhar até ao prédio. Ela entrou para o r/c e eu aproveitei para convidar essas três pessoas do r/c, além de si própria. Uma criança inclusive – o Gevor – a quem apertei a mão, como é hábito. Normalmente dou um aperto de mão às crianças com quem me cruzo, no prédio, e elas já sabem.
Neste momento tenho gravados no meu telemóvel 48 telefones de pessoas arménias ou russas que conheci na Arménia. Algumas já estão na Rússia, outras estão no sul. Falo com elas pelo WhatsApp, Telegram ou Viber. Mas estive em casa de muitas pessoas que disseram não ter internet no telemóvel, para eu enviar as fotos, e portanto não tenho o contacto dessas pessoas para as convidar. São muitas, mesmo assim. Eu não sabia que a minha exposição final iria ser aqui no estúdio – aliás, nem havia obrigação de haver uma exposição final, nesta residência artística, dado que o foco é a interação com a população local. Dia 18 de julho comecei a questionar os responsáveis da residência artística sobre o local onde ela iria realizar-se, e supunha que iria ser no espaço da Art Basis, em Yerevan. No dia 23 tivemos uma videoconferência, onde me disseram que esse espaço tem outra exposição a decorrer, pelo que a minha deveria ser aqui mesmo no estúdio. Só uma semana antes da residência terminar é que eu soube, portanto. Se soubesse antes, teria pedido os contactos telefónicos a toda a gente, dado que eu tenho um número de telefone arménio e posso enviar sms, ou poderia mesmo ter formalizado o convite logo no momento, enquanto estava com as pessoas. Eu fui convidando para me visitarem, mas sem dia nenhum marcado, e sem falar em exposição nenhuma.
Esta residência artística decorreu de forma totalmente independente. Recordo que os dois responsáveis estão fora: a Mary vive na Alemanha, o Momik vive em Yerevan. Tive duas pessoas na residência a resolver questões logísticas: o Vahagh para receber-me e passar-me a bicicleta, o Sargis para trazer-me um aquecedor.
Questionei os primeiros sobre se existem artistas no outro prédio, e que gostaria de conhecê-los, mas não esteve cá mais ninguém, pelo que percebi, além dos artistas que apresentei na crónica 4.

A partir das 22 horas começaram a fazer grandes rajadas de vento, depois relâmpagos, trovoadas e chuva torrencial.


¹ Norte, R. (2022). “A experiência do lugar: a sua influência na produção pictórica do artista-viajante, no século XXI”, pp 99 e 102. Dissertação de Mestrado em Pintura, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Disponível em:
https://repositorio.ul.pt/handle/10451/55792

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