Dia 18 – Dia inteiro de estúdio & os transportes na Arménia

Despertar às 7. Dormi quase oito horas.
Estou cansada, hoje não saio do estúdio. Só para ir buscar comida.

O meu user foi removido da aplicação Yev-Yev dos táxis partilhados. Agora pede um código por SMS que eu não recebo. Se isto me tivesse acontecido ontem à tarde, em Yerevan, estava tramada. Desinstalei a aplicação e voltei a instalar, reiniciei o telemóvel, e continua a não funcionar, não recebo o código SMS. Já me tinham falado disto – quando estas empresas de táxis partilhados não gostam dos utilizadores, ou ficam descontentes com eles por algum motivo, bloqueiam-nos. Às vezes há pedidos falsos, por exemplo. Mas correu tudo bem, fui a Yerevan e voltei, fui pontual, paguei. Qual é o motivo para me bloquearem o acesso? Eu ainda preciso de mover-me na Arménia, e agora não consigo reservar o transporte.

Passei a manhã a planear a ida para o sul, a Halidzor. Existe um teleférico aqui, que liga Halidzor a Tatev. Eu quero ir conhecer o sul da Arménia, e aproveito para andar neste famoso teleférico. A viagem é extremamente difícil: são apenas 360 quilómetros, mas leva um dia inteiro, em transportes públicos. Aparentemente há três “marshrutkas” (os minibus) que partem de uma “South Bus Station” em Yerevan. O Maps.me não identifica nenhuma estação com este nome, mas a app do Yandex Taxi identifica-a. Nos resultados da busca aparecem-me o 607, o 611 e o 615. Nenhum vai para Halidzor, o mais perto que ficam é Goris (primeiro que eu descobrisse isto, foi outro tanto tempo a fazer pesquisas no mapa). Também posso ir para Tatev, em vez de Halidzor. Mais uma hora a fazer pesquisas. E ainda falta o hotel, mas isso é através dos sistemas de reserva que existem na internet e que uso há anos, isso é o mais fácil e rápido e fica para o fim. Adicionalmente, não é possível reservar um lugar nas marshrutkas: as reservas são feitas exclusivamente por telefone, e ninguém fala inglês. Mesmo assim eu experimentei ligar para os contactos do 607, que estão na internet. Perguntei se falam inglês, a senhora respondeu que não e desligou-me a chamada. Portanto eu vou ter um hotel marcado, vou fazer duas horas de viagem até Yerevan, e não sei se tenho um lugar no minibus para Goris.
E agora nem aos táxis partilhados entre Gyumri e Yerevan eu tenho acesso, bloquearam-me o acesso.
Reportei isto aos responsáveis da residência artística, que me disseram que iam ligar para a Yev-Yev. Dois dias depois voltei a dizer que continuo sem acesso, mas nunca cheguei a receber resposta sua. Liguei eu própria para os vários números da Yev-Yev, que estão na internet, uns de Yerevan, outros de Gyumri, e atenderam-me dois homens. Mas não falam inglês e também me desligaram as chamadas.

Naturalmente que as pessoas que entretanto conheci se ofereceram imediatamente para me reservarem um táxi. O Hakob ofereceu-se, a Nelly disse-me que era só dizer a hora, e nem falei com outras pessoas, como a Gohar, ou a Leila, ou a Goharik, pessoas com quem mantive o contacto e que me ajudariam facilmente. A Leila só viria a saber destes episódios mais tarde, já eu estava em Portugal, e respondeu-me que há gente má em todo o lado, e para eu misericordiosa. De facto ainda irá haver outra má experiência, mais à frente nesta viagem – lá chegaremos – que deu para perceber claramente que os turistas de língua inglesa não são bem-vindos para esta pequena empresa de táxis partilhados. O taxista reportou, por telefone, ali no momento, aos escritórios, que eu falava inglês. E isso deu problemas, como veremos numa crónica futura.

Apesar disto, e dado o apoio que tenho da população local, o meu estudo prossegue.
Depois tenho que saber os horários de regresso. Faz-me falta alguém entendido, alguém aqui da população local que saiba isto de cor e salteado. Ou talvez não: eu ainda perguntei a três pessoas sobre estes transportes para o sul e não me souberam responder. Apesar de ser barato, o sistema de marshrutkas e táxis partilhados é tão complicado, com erros nos sites (recordemos o caso da Tatiana e da mãe, que chegaram à paragem e afinal não existia o transporte desde a altura da Covid; e eu mais tarde virei a saber que só existe um autocarro para Goris – o 607; não existem três – e se existem, estão bem camuflados), como eu ia a dizer, apesar de ser barato, o sistema de transportes públicos é tão complicado, que os arménios pouco viajam dentro do seu minúsculo país. Recordo novamente as suas dimensões, para termos uma melhor noção: Portugal continental tem 89 mil km², e é um país minúsculo comparado com uma Alemanha, por exemplo, que tem 357 mil. A Arménia tem apenas 30 mil km². Todos os arménios com quem eu fui conversando, ao longo desta viagem, pouco conhecem de outras zonas do seu pequeno país. O lago Sevan, por exemplo, onde eu quero ir também. É uma zona com praias, o lago tem 78 km de extensão, e existe lá um bonito mosteiro. As praias estão a 130 km de distância de Gyumri. É um passeio para ir de manhã, passar lá o dia, fazer um piquenique, visitar o mosteiro (que tem entrada gratuita) e regressar ao final da tarde. Não é preciso gastar dinheiro em alojamento, e passa-se um belo dia. Mas de todas as pessoas com quem eu fui falando ao longo desta viagem, poucas conhecem o lago Sevan, outras disseram-me que estiveram lá há vinte anos atrás. Todavia houve um ponto comum: todas mostraram encanto pelo lago Sevan e disseram que gostariam de lá ir. Mas 130 km para lá, e outros 130 para cá, parece uma coisa inatingível.
E nem sempre são questões financeiras a impedir os passeios dentro da Arménia. Lembro-me imediatamente da China: quem acompanhou as crónicas percebeu claramente que a maior parte do turismo, dentro da China, é feita pelos próprios chineses. A China é gigante, tem um bom sistema de transportes públicos, e os chineses viajam imenso. E nem todos são propriamente ricos – é sobretudo a classe média, estudantes inclusive, como encontrei vários, e com quem conversei. Os arménios precisam ainda de enriquecer e de cultivar um maior interesse em explorar o seu próprio país. Tudo isto se deve a condicionantes históricos, naturalmente: o genocídio há uns meros cem anos foi a catástrofe total – nessa altura os arménios eram um povo próspero, culto, desenvolvido, e simplesmente foi chacinado ou expulso para o estrangeiro, onde viria a contribuir para o desenvolvimento desses países estrangeiros. Depois foram os conflitos bélicos, e finalmente o maldito terramoto de 1988 que veio dar o golpe final. Milhares de mortos, milhares de desalojados – tudo precisa de começar de novo, tudo precisa de ser reconstruído – e ainda estamos nesta fase hoje, em 2024. Gabo a perseverança deste povo. Torço para que daqui a mil anos estejam no topo das galáxias, com naves sofisticadas, e uma nação tranquila e próspera.

Aquela embalagem branca, com arroz, é minha. É o arroz de legumes que sobrou no outro dia. Como se pode ver, ele está entusiasmadíssimo.

Finalmente atinei com a frigideira e não deixei que os ovos se partissem. Hoje encomendei duas costeletas de porco, mas verifiquei que era comida a mais, e acabei por deixar uma no frigorífico, para amanhã.

Tive um sobressalto com um dos funcionários da churrasqueira: eu vi o que me pareceu ser uma espetada de carne a assar (aos quadrados – não a carne picada do kebab) e quis ir ver o que era. Eu estava esperançada em encontrar outra alternativa de almoço, se existissem espetadas de carne. Porque não há uma lista, não há um menu em inglês – só existe em arménio escrito na parede, como mostrei na crónica 1. Pedi tradução através da câmera do tradutor Google, mas saíram coisas perfeitamente ininteligíveis. E então o funcionário do restaurante enxotou-me dali para fora com muito maus modos; mais um pouco e espancava-me. Ao final da tarde a Nelly pediu desculpa por ele e perguntou se eu estava bem. Efetivamente passei a tarde desconfortável por causa deste episódio. Um funcionário de um restaurante tem que saber lidar com o público, tem que ter educação e maneiras. Toda a gente sabe que os clientes podem ser aborrecidos, mas não vamos espancá-los por causa disso. Educadamente dizia-me: é proibido vir para esta zona, só os funcionários podem entrar aqui. Mas o funcionário não sabe falar inglês, enervou-se e quase me matou.

Naturalmente que não voltei lá mais, mesmo tendo a doce Nelly a tratar de tudo comigo pelo WhatsApp. Mas a Nelly nem sempre está lá a atender. E de qualquer forma considero este episódio uma força do destino: a minha alimentação tem que mudar, neste país. Eu não posso estar um mês a comer todos os dias costeletas. Se não existem restaurantes em Mush, então tenho que desembaraçar-me de outra forma. Não fui a bem, fui a mal. Ao 18º dia, a minha alimentação vai mudar, portanto.

Curiosamente, ao 18º dia, finalmente tenho wifi no estúdio. Os responsáveis da residência deram-me um número de telefone da Telecom (não me lembro a marca) e eu telefonei, e a senhora que atendeu sabia falar inglês comigo, e eu disse o número de telefone do router, e a Telecom ligou-me a internet ali no momento. Já tenho wifi, finalmente. Eu recordo que tenho internet ilimitada no meu telemóvel – o problema é que o iPhone só faz os backups noturnos se estiver ligado à tomada e a uma rede de wifi. Recebi um aviso da Apple, ao 7º dia, a dizer-me que os backups não estão a ser feitos há sete dias. Isto é grave. Se eu perco o telemóvel, ou se se avaria, os backups têm que estar feitos diariamente, nomeadamente o das fotos na cloud.
Ao 18º dia, muitas mudanças aconteceram, portanto.

Nenhum deles sobreviveu, coitados. Pintei-os todos por cima. Resta esta foto de recordação da sua efémera vida. Criei-os e destruí-os com as minhas próprias mãos. Dei-lhes vida e aniquilei-os. Sinto-me uma feiticeira a fazer aparecer e desaparecer.

O processo da aniquilação.

E apareceram estes três . Temos três novas criaturas, hoje.

São 20h49. Daqui a dez minutos começam os habituais relâmpagos, trovoadas e chuva torrencial. Ainda tentei fotografar os relâmpagos, mas não consegui.
Não comi nada ao deitar, nem leite morno, não me apeteceu nada.

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