Dia 12 – De bicicleta e de carro até à Basílica de Yereruik

Despertar às 5h30.
Ontem à noite mudei de planos e pedi ao taxista Rubo para apanhar-me às sete da manhã aqui no estúdio e levar-me até Aghin. A partir daí eu farei o resto de bicicleta até à basílica. Até aproximadamente às 22 horas, estivemos em contacto para ajustar o percurso, eu cheia de sono; mas se os planos não fossem alterados, eu cancelaria esta viagem. Eu quero chegar à basílica de bicicleta, e não de carro.
O Rubo perguntou se podia apanhar-me às oito e eu recusei, pedi às sete horas.
Tive um sono agitado esta noite, dormi pouco, com a responsabilidade de ter outra pessoa incluída nos meus horários e planos. Também receio que hajam cães que me ataquem, pelo caminho. Em passeios anteriores, aqui em Gyumri, fui duas vezes perseguida por cães, apesar de não ter comentado nas crónicas. Foram episódios sem consequências.

Às 7 em ponto o taxista Rubo chegou. Tem 29 anos e mora no bairro ao lado do meu, disse-me.

Do lado esquerdo vê-se a estátua da “Mãe Arménia”, que visitei na crónica 4.

Seriam umas 7h30 quando chegámos a Aghin, e eu tive um percalço: o meu telemóvel não tem internet outra vez. Eu quero ativar o GPS, e o telemóvel não responde, não define a minha localização – ainda diz que estou em Mush. Se eu não tiver GPS não posso ir, temos que voltar para trás.
O Rubo, nesta foto, está com o meu telemóvel nas mãos, a mexer nos botões todos e nas definições todas, a ver se ele reage e acorda. Ainda estivemos uns quinze ou vinte minutos nisto. O Rubo diz-me que a Team Telecom tem pouco sinal nas aldeias, e que eu devo comprar um cartão da Viva Telecom, que é melhor. Efetivamente no aeroporto havia três bancadas diferentes a venderem cartões de telemóvel, todas com o mesmo preço e condições, mas uma pessoa sabe lá. Entretanto, colocou o seu próprio telemóvel como hotspot do meu, deu-me wifi, e instalou-me a app do Yandex Navigator. Nem percebi bem para quê, pois vim a descobrir que esta app não tem caminhos para bicicleta, e acabei por desinstalá-la. Mas no meio destas mexidas todas, a internet no meu telemóvel reanimou-se e finalmente eu pude partir. E se porventura eu perder a internet pelo caminho, a aplicação que eu estou a usar – “Maps.me” – trabalha offline, ou seja, desde que eu tenha os mapas instalados (tenho), a navegação continua disponível. Não percebi porque não identificou a minha localização, se não precisa de internet. Foi a ligação hotspot do Rubo que fez o meu telemóvel localizar-me finalmente aqui, em vez de em Mush.

Eu não vou pela estrada, vou por caminhos de terra e estradas locais que o “Maps.me” vai indicando, como é hábito.
Esta povoação efetivamente ainda não é Aghin, é um pouco antes, onde o “Maps.me” diz que posso sair da estrada e seguir por caminhos de terra.
Levo três camisolas vestidas, para ir despindo conforme aquece. Eu aguentaria o frio da manhã e pronto, mas estou a recuperar de uma constipação, não estou totalmente bem, não é aconselhável apanhar frio.

Tenho 24 km pela frente, bem longe da estrada, felizmente. A estrada é a linha cor-de-laranja.

À minha direita é a fronteira com a Turquia. Tem arame farpado. A Arménia e a Turquia têm relações diplomáticas cortadas desde 1993. O conflito entre os dois países está enraizado em eventos históricos, principalmente no genocídio arménio ocorrido durante a Primeira Guerra Mundial, que a Turquia nega oficialmente reconhecer como genocídio. Nos últimos anos, tem havido tentativas de normalizar as relações.

E aquele é o rio Akhurian, que apresentei na crónica 10.

Agora é que estou em Aghin, dez minutos depois de arrancar na bicicleta.

Conforme expliquei numa crónica anterior, estes ferros fazem parte da infraestrutura de distribuição de gás natural.

Este homem, que eu acabei por não ficar com o nome, tem o meu telemóvel nas mãos e está a traduzir a mensagem que me quer dar: que não é possível seguir o meu caminho na bicicleta ali junto ao rio, junto à fronteira, porque estão lá militares que não me deixarão passar. Disse-me que eu tenho que ir pela estrada.
Jamais.
Efetivamente outras duas ou três pessoas disseram-me isto, inclusive o homem que se vê noutra foto abaixo.

Este homem veio no carro atrás de mim, parou, e ligou para a filha, que sabe inglês, para ela falar comigo ao telemóvel. A filha perguntou-me se eu precisava de alguma coisa. Não, eu não preciso de nada, ando a passear de bicicleta. E disse-lhe para avisar o pai que vai ser fotografado. Eles riram-se.

Notei um ambiente tenso nesta aldeia. Todos a dizerem-me que não é possível seguir o meu caminho por aqui, e que tenho de ir para a estrada. Esta fronteira com a Turquia põe os arménios nervosos, e estão a deixar-me a mim nervosa também.
Eu pela estrada garantidamente não vou, em último caso telefono ao taxista Rubo para vir buscar-me. A minha bicicleta é de montanha, tem pneus largos, é pesada, não foi feita para andar em alcatrão, é lenta. E sobretudo: eu não suporto trânsito automóvel.

Quem salvou a situação foi a Elia, que me convidou para tomar café em sua casa. Uf, sim, por favor.

A Elia (que se escreve “Elja”, explicou-me) tem 58 anos e 3 filhos, duas meninas e um rapaz. Disse-me que não está nada arranjada – não está bem vestida nem penteada. Pois claro, eu apareci de surpresa, são 9 da manhã. Falámos um pouco através do tradutor Google, expliquei-lhe quem sou e o que ando aqui a fazer. Contei-lhe que vou até à basílica de Yereruik.

A Elia tem o meu telemóvel nas mãos, e escreve-me o nome dos legumes, para eu identificar as plantas. Tem batata, feijão, tomate, entre outros. Também tem vacas, que estão a pastar longe, e os bezerros estão aqui.

Uma foto da própria Elia, que me mostrou no seu telemóvel.

Estive 45 minutos com a Elia, e foi uma paragem muito simpática e agradável para descontrair do ambiente tenso que vai nesta aldeia. Mas eis que, mal saio, deparo com este casal e a tensão é retomada. Ao chegarem junto a mim – eu parada na bicicleta a tirar fotos – cumprimentamo-nos e apresentamo-nos. São russos, o rapaz é um oficial russo e a rapariga é a sua mulher, que está cá temporariamente consigo, de férias. A sua mulher, que se chama, Ana, muito simpática, pediu-me o meu website, e trocámos de WhatsApp. Conversámos um pouco, sobretudo com o tradutor Google, pois eles pouco falam inglês. E voltam a repetir-me que não posso ir por aqui, que os militares não me vão deixar passar. O rapaz mostra-me o seu passaporte e pede-me o meu. Mau. Eu recusei. Mas agora tenho que apresentar o meu passaporte aqui no meio da rua, assim sem mais nem menos? Já têm o meu website, não chega? O rapaz voltou a mostrar-me o seu passaporte, e desta vez eu percebi que ele é um oficial russo, está fardado na foto – eu não tinha reparado. Será que ele pode falar com os seus amigos militares para me deixarem passar? Eu só quero ir à Basílica de Yereruik!… Eu quero lá saber da Turquia, eu não quero fugir para a Turquia, eu estou bem aqui na Arménia a passear de bicicleta. E nesta esperança que ele apresentasse o meu website aos seus amigos militares, para perceberem que sou uma turista e me deixarem seguir caminho até à basílica, mostrei-lhe o meu passaporte, e ele tirou-lhe uma fotografia. Mas arrependi-me. Porque carga d’água estou eu a apresentar o meu passaporte a oficiais russos à paisana? Esta situação foi um pouco abusiva. Não vamos agora trucidar o rapaz, em ambiente civil, simpático, com a mulher, a trocarmos de contactos no WhatsApp, mas enfim, não é suposto os russos andarem a pedir o passaporte aos turistas que andam na Arménia. Mesmo que seja para dar aos seus amigos arménios que estão na fronteira.

Prossegui o meu caminho, tal como indicado pela aplicação “Maps.me”, e ignorei todos os que me disseram que não é possível. Se os militares vierem atrás de mim e me prenderem, terei que recorrer aos serviços de alguma embaixada. Não existe representação diplomática portuguesa na Arménia, e segundo as instruções que eu tenho, retiradas do Portal das Comunidades Portuguesas, em caso de emergência consular, um cidadão nacional pode solicitar proteção a qualquer Embaixada da UE representada no país. De qualquer forma acho que ninguém vai prender-me, simplesmente me mandam voltar para trás.

Este pastor chama-se Karigaidan. Pelo menos assim percebi. Ele é que deu um berro a chamar-me; eu passava sem o ver. Travei e voltei para trás. Ele mostrou-me o seu Facebook, mas está no alfabeto arménio, não consegui escrever-lhe o meu.

Esta foto foi tirada com a minha câmera no chão. Depois o Karigaidan tirou-nos uma selfie com o seu telemóvel. É um pastor todo moderno, este.

Agora cheguei a uma aldeia. Continuo sem perceber porque é que todos me diziam que eu tinha de ir pela estrada. Mas esta gente não é daqui? Não sabem os caminhos? Não veem os pastores com as vacas? O que pensavam eles?… Que eu ia nadar no rio que faz fronteira?

Estes dois homens foram as únicas pessoas que vi, nestas ruas. Acenei-lhes, como cumprimento.

Ele chama-se Zaven, vim a saber, e chamou-me, e foi chamar também os seus filhos.

O Zaven tem 49 anos; a Svetlana tem 19 e está no 2º ano de Economia, em Yerevan, e o irmão Narek tem 10 anos. O Zaven foi vestir uma camisa lavada e penteou-se, para as fotos. O Narek aproveitou e também se penteou. Esta foto levou uns minutos a tirar, portanto, com os preparativos. Efetivamente tirei cinco, e o Narek foi mudando de posição em todas elas, em poses muito engraçadas. Este miúdo é muito simpático e super fotogénico. Quando fui embora, ofereceu-me uma flor. E agora ofereceu-me um damasco. Depois alguém foi buscar uma tigela com várias frutas, e café.

É uma vizinha, que entretanto chegou.

De tshirt cinzenta agora apareceu a irmã da Svetlana e do Narek: Astxik, de 17 anos, que vai seguir Direito para o ano.

Estive meia hora com esta família muito simpática. Apontaram-me a igreja lá ao longe, mas fica em caminho contrário. Eles ofereceram-se então para levar-me lá de carro, mas eu tenho hora marcada de regresso, tenho o taxista Rubo à minha espera, na basílica, não posso demorar-me tanto. Agradeci a hospitalidade, trocámos de contactos no WhatsApp, convidei-os a visitar o meu estúdio em Mush, e parti.

O senhor que está no meio também me perguntou se eu queria um café.

Aqui também me chamaram para um café. Eu não posso recusar todos, agora, por causa da pressa. Apetece-me conhecer as pessoas. Aceitei.

A Aida, de 57 anos, prepara a mesa.

A sua filha Goharik, de 24 anos, e o Ruben, de 3. Na foto seguinte já estão virados para cá:

A Aida quer dar-me aquele saco com uma garrafa de sumo e peças de fruta, para eu levar na bicicleta. Mas eu não quero andar carregada – faz-me doer as costas, disse-lhe eu através do tradutor Google. Ela insistiu, e eu tive que fugir, ainda tenho muitos quilómetros pela frente, em piso irregular, não posso andar carregada. De qualquer forma eu comi algumas coisas, quer na casa do Zaven, quer aqui, e estou bem. Agradeci muito a sua atenção e parti. Também trocámos de contactos no WhatsApp, para eu enviar as fotos logo à noite, e convidei-as para visitarem o meu estúdio em Mush.

As pessoas são apanhadas desprevenidas nas suas casas, de chinelos e pantufas, com as roupas de casa, nestas fotografias. Fica aqui a foto da Goharik no seu WhatsApp.

São 12h25 e aplicação “Maps.me” diz-me que faltam 14 quilómetros, e que o percurso dura 1h20. Quando a aplicação diz 1h20, eu levo 2h.

Há muito trânsito aqui. Eu parei para deixar a borboleta passar.

Por esta altura já tenho várias mensagens, e até um telefonema, do taxista Rubo a perguntar-me o que se passa. Tive que atrasar uma hora a minha chegada – em vez de às 13h, chegarei às 14h, à basílica. Estes 10 quilómetros seguintes foram feitos em solidão total, silêncio total, como eu tanto gosto, mas já debaixo de stress por causa do meu horário de chegada. Enviei-lhe uma foto, para ele perceber que está tudo bem e que basta aguardar. O Rubo respondeu que se ia embora às 14, que tinha coisas para fazer. Acabou por ser stressante para mim, e aborrecido para ele. Acelerei, mas torna-se perigoso acelerar em chão com pedras, se eu caísse seria um problema, neste deserto. Não volta a acontecer, é preciso outro modelo de acompanhamento da bicicleta. Eu quero tomar café com as pessoas, usufruir da paisagem, não quero fazer corridas de bicicleta. Da próxima vez tenho de planear isto melhor.

O rapaz do chapéu tirou uma selfie comigo, e uma vez mais, disse-me que não há caminho para a basílica, por onde eu estou a ir. Tanta a gente a dizer-me que não há caminho, que eu não devo seguir por aqui ou por ali. E eu sigo sempre o meu caminho e chego ao meu destino. Isto acontece em todos os países por onde ando. As pessoas que nasceram aqui, e viveram toda a sua vida aqui, não sabem os caminhos pelo campo. Só conhecem as estradas. E depois, com boas intenções, preocupadas comigo, querem impedir-me de seguir o meu caminho. Eis a história da nossa vida: as boas intenções nem sempre são proveitosas, e cada qual deve seguir com determinação o seu caminho.

Estas coisas sim, são um impedimento para eu seguir o meu caminho. Mas eu contornei o obstáculo, fui por cima: isto é uma ponte e há uma linha de comboio por cima, que eu atravessei.

São 13h31 e regresso à estrada. Aquele carro lá ao fundo, parado, é o taxista Rubo, vim a descobrir quando passei por ele. O Rubo traçou o meu caminho através da aplicação Maps.me. Eu enviei-lhe outra foto do local em que eu estava, dizendo que, de acordo com a informação do Maps.me, faltavam 22 minutos para eu chegar. E o Rubo conseguiu localizar-me a partir daí, e esperou-me na estrada, no ponto onde eu iria sair do campo.
Por esta altura ainda faltam três ou quatro quilómetros para a basílica, que eu faço questão de fazer na bicicleta. Quero chegar à basílica de bicicleta.

Eu preciso de água, já não tenho água, e aqui o Rubo deu-me água, e depois seguiu à minha frente, e perdi-o de vista. Ele vai a fugir porque não quer ficar na fotografia. O Rubo diz que durante a manhã voltou a Gyumri. Fez a barba e vestiu uma roupa mais fresca.

Basílica de Yereruik à vista! Coitadinha, está muito sozinha e destruída no meio de tantas pedras.

Uma foto maravilhosa, com vista panorâmica sobre a basílica e sobre as tubagens do gás.
São 13h49. Este passeio começou às 7h55, durou quase seis horas, portanto. Por vontade minha, duraria mais 30 ou 40 minutos, pelo menos, naqueles dez quilómetros silenciosos em que eu tive de acelerar. (Mas deixei passar a borboleta!)

Esta basílica foi construída nos séculos IV e V. Sendo um dos primeiros monumentos cristãos sobreviventes na Arménia, foi adicionada à Lista do Património Mundial da UNESCO em 1995.

São 14h58, e ainda a caminho encomendei duas costeletas de porco à Nelly, por WhatsApp, mas ela disse que não havia, e perguntou se eu queria uma espetada de carne – kebab. Eu acedi.
Paguei ao taxista Rubo, agradeci, e fui almoçar.

É a simpática Asmik que me atende hoje; já começo a saber os nomes dos vários funcionários no supermercado. O Karen, a Asmik, a Arpine. Tratam-me bem, tentam ajudar-me em tudo o que podem, vamos falando através do tradutor Google.

Depois tomei banho, mas faltou a luz, fiquei às escuras na casa de banho, e o esquentador, sendo elétrico, desligou-se. Tive que tirar o sabonete do corpo com água gelada. Já não pus a segunda vez de sabonete, paciência. A recuperar de uma gripe não é bom tomar banho com água tão gelada – a água de Gyumri vem gelada. A luz voltou pouco tempo depois, tinha de faltar exatamente quando eu estava a tomar banho.

Às 17h30 finalmente estendi-me na cama a descansar e fui selecionar as fotos, e fazer o backup. O registo fotográfico dá muito trabalho, nem tanto no momento, mas sobretudo após o final de cada dia. É essencial que eu consiga fazer a limpeza diária das fotos, em cada dia da viagem: eliminar as repetidas e as que ficaram menos bem. Por exemplo: ao fotografar um ciclista que passa na rua, eu tiro várias fotos com ele (ou ela) em andamento. No final do dia, na limpeza diária, eu elimino todas as fotos e fico apenas com uma – a melhor. Eu sou impiedosa a eliminar fotos.
E também é essencial fazer um backup para a cloud. Todo este trabalho ocupa cerca de uma hora por dia, e convém não falhar, porque senão, no dia seguinte serão duas horas. Este backup para a cloud, ao final de cada dia, é essencial também: imaginem que a máquina fotográfica se avaria. Que o cartão de memória se avaria. Ou que perco a máquina, ou que ma roubam, ou que deixo cair à água. Todas as fotos estão salvaguardadas em três locais: na câmera fotográfica; no telemóvel; e na cloud do meu iPhone.

Enviei as fotos por WhatsApp para todos os que têm WhatsApp, ou Telegram, ou Viber. Há grande azáfama de mensagens, todas as noites e todas as manhãs. Eu escrevo em arménio, e as pessoas respondem-me em português.

Passei o resto da tarde deitada, já não me levantei mais. Às oito já estava a cair de sono.
Bebi meio litro de leite morno com mel e canela, dois figos secos com nozes, e queijo. Ainda tenho os dois queijos que trouxe de Portugal.

E ao rever as fotos de hoje, constatei novamente o que já sei há tanto tempo: mais importante do que os monumentos ou as lindas paisagens, são as gentes. São as gentes que fazem um país. Visitar este monumento de carro, diretamente, não teria nem um décimo do interesse.

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