Dia 3 – No estúdio & de bicicleta em Mush

Acordei às 6h30 com imensa luz, felizmente trouxe um “tapa-olhos”, mais conhecido como “máscara de sono”. É aquilo que se põe nos olhos, nos aviões, com um elástico à volta da cabeça, para não sermos incomodados pela luz durante o sono. Efetivamente arranjei o meu em algum voo. O apartamento não tem persianas ou cortinas, e os estores descem apenas metade da janela. De qualquer forma nem essa metade eu fecho, eu gosto de dormir com luz natural. Nem acendo as luzes quando anoitece, deixo os olhos habituarem-se à luz noturna, e ando no apartamento com a luz natural lá de fora, às escuras. Afinal de contas tenho 6 grandes janelas, neste estúdio. Faço o mesmo em minha casa, em Lisboa, mas aí tenho candeeiros de sal, com luz amarela e extremamente suave. Estas luzes deste apartamento são fortíssimas e brancas, estão preparadas para algum artista trabalhar à noite, se assim o desejar. Faz-me falta uma luz fraca, amarela, para a noite. Encontrei umas velas num armário e vou usá-las. Eu tenho fósforos comigo, que trouxe de Portugal, é uma coisa que anda permanentemente na mala, nem sequer os tiro da mala entre viagens. Mas as velas são muito finas, vão desaparecer num instante, pelo que irei hoje mesmo comprar velas e fósforos. Vou procurar lojas aqui em Mush que os vendam.

Os cereais que eu trouxe de Portugal. Vou precisar de outra embalagem, isto para um mês não chega, e de facto eu tinha outra para trazer, de outros cereais, mas não couberam na bagagem. Não coube absolutamente mais nada, muito menos meio quilo de cereais. Também irei hoje procurar nos supermercados aqui de Mush cereais de pequeno-almoço, vamos ver o que é que os arménios comem.

E eis que me constipei. Tive que agasalhar-me rapidamente, fui vestir umas calças de fato treino grossas, e umas meias grossas também. Pintei durante cinco horas esta manhã, até ao almoço, e estar assim parada, sentada, sem me mexer, deixou-me gelada. De manhã estavam 10 graus Celsius (50 Fahrenheit). E o aquecimento do estúdio aparentemente não funciona, não consigo pô-lo a funcionar. Questionei os responsáveis da residência, que me responderam que não têm a certeza se o aquecimento se pode ligar agora.
À hora de almoço começou a chover.
E começou assim a minha saga com este clima agreste das montanhas. Faz muito vento, frio e chuva. Apenas à tarde faz calor, mas com grandes rajadas de vento frio, normalmente. E, adicionalmente, Gyumri está a 1.550 metros (5.085 pés) acima do nível do mar. Eu não estou habituada a este clima das montanhas, e a esta altitude.
Pois vais ter que habituar-te, Rute.

São duas da tarde e eu saio para ir buscar comida. Todas as fotografias, até agora, foram tiradas da janela do meu estúdio. E nesta loja vendem velas e fósforos. E papel higiénico também – mais suave do que o que está no meu apartamento. As duas velas custaram 100 drams (0,24€), os fósforos 10 drams (2 cêntimos); e o papel higiénico 110 drams (0,26€). Aqui em Mush vendem rolos de papel higiénico individuais, nos supermercados também. Não vendem pacotes de 48 rolos, como em Lisboa. Custariam cerca de 5000 drams, é muito dinheiro para o poder de compra em Mush.

Quem me atende hoje na churrascaria é a Nelly, que se vê na foto. A Nelly fala umas poucas palavras em inglês, e esforçou-se por me ajudar na escolha da comida. Também usámos o tradutor Google, no telemóvel. Ainda em Portugal instalei o teclado arménio no meu iPhone, pelo que passei o meu telemóvel à Nelly para ela poder escrever em arménio e explicar-me as coisas. Há comida que leva algum tempo a grelhar, 20 ou 30 minutos, e o peixe leva uma hora, pelo que eu perguntei se há algum contacto – por WhatsApp, por exemplo – para eu encomendar a comida antes de vir. E a Nelly muito gentilmente deixou-me o seu telemóvel pessoal. Hoje optei por outra shawarma, e desta vez a Nelly ensinou-me que há de porco e há de frango, e há com lavash (que é aquele pão que parece um crepe, tradicional da Arménia) ou com pão. Comprei uma shawarma de frango com lavash.

Não há Chocapic! Nem Golden Grahams, nem Crunch, nem nada! Onde estão os cereais de pequeno-almoço?! Estou tramada. Está ali a Granola e o Muesli, é o que me vai desenrascar. Mas ainda vou procurar no outro supermercado. Não é urgente, ainda estou no início do pacote dos meus Chocapics. Hei de ter cem anos de idade e continuar a comer Chocapic, está visto. Bom, é melhor do que as papas dos bebés. Não gosto de comer pão, enche-me muito a barriga e alimenta-me pouco, fico maldisposta. Preciso de mais nutrientes.

Aquele chocolate trouxe-o de Portugal.

São agora 4 da tarde e vim dar uma volta de bicicleta aqui pelas ruas de Mush. Apertei as pequenas mãozinhas a todos eles, como cumprimento.

Eles convidaram-me a sentar e disseram-me que o nome do jogo é “Nardi”. Expliquei-lhes, através do tradutor Google, quem sou e o que estou a fazer em Mush.

Na imagem abaixo está a tradução feita com a câmera do Tradutor Google.

Procurando na internet aquele nome ”Srap Shahinyan”, encontro o seguinte:

“Vários polícias de Gyumri morreram durante a guerra em Artsakh. Eles correram para Artsakh com grande amor e preparação. Um dos polícias, Srap Shahinyan, nascido em 1991, era aluno da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Shirak. Ele completou os estudos na Escola Inglesa George Byron, nº 20. A sua professora de língua e literatura arménia, Satenik Gevorgyan, disse que ensinou Srap Shahinyan por cinco anos consecutivos. “Ele era reservado e não falava muito. Mas sentia-se a Pátria nele desde pequeno. Eu sabia que ele se tornaria polícia e continuaria o trabalho do pai. Ele era uma ótima pessoa, muito atencioso. Eu não imaginava a sua morte nem nos meus piores sonhos. Vi-o há dez dias. Ele estava de plantão na Rua Ryzhkov. Ouvi uma voz familiar a perguntar-me: ‘Como está, Sra. Gevorgyan? Cuide-se, não fique doente, eu gosto muito de si”, lamentou a professora. A professora não conseguiu esconder as lágrimas durante toda a entrevista. (…) Srap é casado e tem uma filha.”¹

A guerra em Artsakh é a guerra que os ocidentais conhecem sobretudo por Nagorno-Karabakh. Artsakh é o nome histórico da região: um enclave dentro do Azerbaijão, disputado por este país e pela Arménia – a vermelho, neste mapa³. Nas notícias mais recentes, de 2024, encontro o seguinte no website do Council of Foreign Relations, o qual publica a revista “Foreign Affairs“, uma das mais respeitadas publicações em política internacional e relações externas:

“Após a ofensiva relâmpago do Azerbaijão e a ocupação de Nagorno-Karabakh em 19 de setembro de 2023, o enclave étnico arménio foi oficialmente dissolvido a 1 de janeiro de 2024. Diante da perspetiva de serem governados pelo Azerbaijão, mais de cem mil pessoas, quase toda a população de Nagorno-Karabakh, fugiram para a Arménia numa semana.”²

Quem desejar saber mais detalhes sobre este conflito, remeto para um bom resumo, em português, escrito por Helena Araújo, uma das coautoras do documentário “ARtMENIA” apresentado há alguns anos na Fundação Calouste Gulbenkian: link.

Este cão estava no andar de cima, à janela, muito impaciente a ladrar, a ouvir o dono na rua. Este foi buscá-lo. O magnífico pastor-alemão chama-se Rex e tem 4 anos de idade.

Foi o dono do Rex quem me tirou esta foto. Tem talento para a fotografia, fez um belo enquadramento.

À esquerda está a Rima, à direita está a Aida.

A Rima começou a chorar e eu perguntei porquê. (Sem eu dizer nada, não é verdade?, ninguém fala inglês. Mas elas perceberam que eu perguntava o porquê da Rima ter lágrimas nos olhos). Então, pelo que percebi, alguém faleceu, e desconfio que era parecido comigo, ou da minha idade, e era alguém muito ligado à Rima. Eu faço-lhe lembrar essa pessoa. Elas explicam-me assim, com os dois dedos juntos, que eram pessoas muito ligadas. Eu ria-me, sem perceber, só depois percebi.

Os cães de rua aqui em Mush são uns sortudos, é a verdade. Estão gordinhos. São chamados pelo nome. As pessoas deixam-lhes comida junto aos caixotes do lixo – onde eu virei a deixar também.

A silhueta majestosa do Monte Ararat, que me irá acompanhar nesta viagem onde quer que eu vá. Faço 200 km de distância e continuo a vê-lo. Está em todo o lado. O Monte Ararat é um estratovulcão composto por dois picos principais: o Grande Ararat, com uma altitude de 5.137 metros, e o Pequeno Ararat, com 3.896 metros. E – surpresa – situa-se na Turquia, não na Arménia. No entanto é um símbolo nacional profundamente enraizado na identidade cultural e histórica da Arménia. Apesar de estar em território turco, aparece no brasão de armas da Arménia e em muitos artefactos culturais arménios. Segundo a Bíblia, o Monte Ararat é o local onde a Arca de Noé pousou após o Dilúvio. Este relato dá à montanha um lugar especial nas tradições judaico-cristãs.

O único multibanco existente em Mush, sempre muito concorrido.
O meu estúdio fica naquele prédio triangular, à esquerda. As duas janelas de cima são minhas. Dali controlo a rua toda e tiro fotografias a toda a gente, sem darem conta. Não escapa nada: pessoas, cães, bicicletas, carros, marshrutkas, pássaros, plantas. E estão 27 graus Celsius (80 Fahrenheit), segundo indica a placa da farmácia. E agora adoeci com os 10 graus desta manhã, só me faltava esta.

À minha direita está o Ashod; à minha esquerda estão a Meri e a Ruzanna. Os meninos pequenos não sei.

Ainda dei umas voltas de bicicleta ali à volta, com o simpático Ashod.

Deitei-me às 20 horas e tive de tomar um Ben-u-Ron 1 grama. O frio e altitude em que nos encontramos deu cabo de mim, esta manhã, a pintar. Sinto arrepios na coluna. Está a atacar em força.


¹ Arevshatyan, N. (8 outubro 2020). “Two police officers who died in the war were on duty in historical part of Gyumri during lockdown”. Página consultada a 7 agosto 2024,
https://en.aravot.am/tag/srap-shahinyan/

² Center for Preventive Action (20 março 2024). “Nagorno-Karabakh Conflict”. Página consultada a 7 agosto 2024,
https://www.cfr.org/global-conflict-tracker/conflict/nagorno-karabakh-conflict

³ Araújo, H. (30 novembro 2020). “Nagorno-Karabach”. Página consultada a 7 agosto 2024,
https://conversa2.blogspot.com/2020/11/nagorno-karabach.html

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