26 – 13º dia, os cães vadios em Sófia

Hoje é sábado, 22 de julho de 2023. São 6h42.
Não tenho frigorífico, no entanto os alimentos aguentaram-se todos. As latas amarelas são as cervejas que me ofereceram na rua, conforme contei na última crónica, e que eu irei dar ao rececionista assim que o vir. O hotel tem um código na porta, de seis algarismos, que me permite entrar sem necessidade de porteiro.

Ainda estudei os transportes para o cemitério, mas tinha que andar tanto para chegar à paragem do autocarro, ou do elétrico, e depois, dependendo da opção, ainda tinha que andar tanto para chegar ao cemitério, que optei por fazer meia hora a pé e não apanhar nada. O cemitério está a 2 km de distância. Não conto os 500 metros, ou coisa que o valha, no interior. O cemitério é grande, o lado maior tem mais de 1 km.

Vista aérea do cemitério central de Sófia.
Foto de Vassia Atanassova, Wikipédia.

Aqui está uma coisa que me faz confusão e que eu ainda não tinha comentado. As pessoas saem do elétrico e ficam no meio da estrada. Nesta faixa circulam carros, pelo que as pessoas andam no meio dos carros para entrar e sair dos transportes públicos.

Ontem, quando apanhei o elétrico, um carro teve de parar para eu entrar no elétrico. E eu, sinceramente, nem o vi. Se o condutor fosse distraído como eu ia, eu teria sido atropelada. Felizmente seria um condutor búlgaro, habituado a estas coisas, e parou imediatamente mal me viu dirigir-me para o elétrico. É uma prática comum, apercebi-me: os condutores têm que parar e dar prioridade aos peões.
Ora isto é totalmente proibido em Portugal, por exemplo. Um guarda-freio arrisca-se a ficar sem a licença de condução se largar um passageiro fora da paragem. Ou devo dizer: longe da paragem.
Cada país, cada sentença. O que uns dizem estar errado, outros praticam-no no dia a dia.

Mais outro cão vadio. A atravessar perigosamente as estradas, sem trambelho nenhum, em plena capital europeia. Eu até desviei o olhar, por momentos; só faltava ver um cão a ser atropelado à minha frente. Os elétricos a passarem a toda a velocidade. E este tem uma placa na orelha. Por causa desta placa fiz busca na internet, e descobri que até no Tripadvisor esta questão dos cães vadios, na Bulgária, é discutida. E no Instagram alguém criou uma conta. Pelo que leio, a situação está muito melhor do que há uns anos atrás. Morreram pessoas, inclusivamente, atacadas por bandos de cães vadios, em Sófia. Estas almas a mim não me fizeram mal nenhum, pelo contrário, fugiram todos à minha tentativa de aproximação.

A organização não governamental (ONG) “Street Hearts Bulgaria” escreve no seu website:
“Ver a vida que os cães de rua têm na Bulgária pode ser de partir o coração. Muitos cães de rua são abandonados, seja porque estão doentes, grávidas ou simplesmente porque as pessoas não os querem mais. Há uma tendência: muitas pessoas mudam-se para as vilas no verão, cultivam os seus vegetais, etc., arranjam um cão para proteger o seu jardim de pássaros, animais selvagens ou pessoas. Então, depois da colheita, voltam para as cidades e os cães são excedentes, deixam de ser necessários, e são deitados fora.”¹

Seguem os números apresentados num relatório do “Intergrupo para o Bem-Estar e Conservação dos Animais”, do Parlamento Europeu:
“Depois de tentativas frustradas de reduzir permanentemente o número de cães vadios, em 2006 o município de Sófia decidiu aplicar uma nova abordagem, que consistiu na esterilização em massa e vacinação antirrábica da população de cães vadios da cidade. O projeto resultou na redução de uma estimativa de 11.124 cães vadios em 2007, para 3.589 em 2018.”²

E leio isto também sobre as décadas de 1990 e 2000:
“Em 1999, a contagem de cães vadios em Sófia chegou a 50.000. Apesar da intervenção da Ecoravnovesie, uma empresa municipal que abateu 40.000 cães ao longo de três anos, no valor de um milhão de levas (…) Cães vadios ainda estão a ser mortos em Sófia e em outros lugares [em 2008], provocando protestos de cidadãos e ONGs de bem-estar animal que consideram a castração uma opção mais humana.”³

A Wikipédia recolheu várias notícias, de revistas e jornais, que eu fui confirmar individualmente. Segue um resumo:
As medidas de controle de cães realizadas pelo município, ONGs e voluntários locais desde a década de 1990 até agora [2008] são focadas principalmente na população de rua.
(…)
A falta de vontade das autoridades para gerir esta crise com sucesso [de sobrepopulação de animais domésticos, não registados pelos donos e posteriormente abandonados] deixou milhares de animais abandonados a morrer nas ruas, seja por acidentes de viação, envenenamento ou tiroteio. Por exemplo, 1.379 carcaças de cães vadios foram coletadas apenas em 2012, enquanto 3.784 foram castrados e soltos no mesmo ano, de acordo com o chefe de controle de animais de Sófia. (…) Políticas obscuras de controle de cães levantaram alguma indignação pública. (…) A Ecoravnovesie, a entidade local de serviços de controle de animais, relata dados bastante incompletos sobre a captura e destino dos cães. Isso pode ser bastante confuso e desconcertante para o público. A população de cães vadios nitidamente diminuiu, enquanto as autoridades afirmavam taxas irrealistas de solturas de cães vivos.”⁴

Ou seja, dezenas de milhares de cães abandonados foram mortos a tiro, ou com outras práticas obscuras, como envenenamento, por voluntários inclusivamente.
Em 2007 a Bulgária passou à condição de Estado-Membro da União Europeia, e surge então a análise do Parlamento Europeu, desde essa data, e que continuo a citar:

“Foram lançadas campanhas de castração gratuita de animais de companhia de proprietários de grupos de risco. No final de 2012, um grande abrigo municipal foi aberto na vila de Gorni Bogrov com capacidade para 840 animais (aumentado em mais 684 lugares em 2013). De acordo com a empresa municipal Ecoravnovesie, no período 2018-2020 estima-se que 2.866 cães foram adotados.
A lei hoje não só incentiva a castração de animais de estimação, como também exige o registo de cães, visando assim erradicar a causa raiz do problema – o abandono de animais indesejados e não identificados.”²

A minha experiência foi a seguinte:
É um horror passear numa capital da União Europeia e ver cenários que eu pensava só existirem nos países de África ou Ásia, onde efetivamente estou habituada a vê-los.
Nenhum cão mostrou qualquer sinal de agressividade; pelo contrário, fugiam de mim quando eu tentava aproximar-me. Pelo que interpreto isto como estando controlada a população de cães vadios agressivos. Como é que a população foi controlada – é a discussão acima. Os números do passado são incoerentes, o que não causa boa impressão. Seria positivo ver dados atualizados sobre esta matéria, e de várias entidades, não só estatais. Entidades ligadas à proteção animal, independentes, para termos um pouco mais de certeza do que está a ser feito. Aquela placa na orelha do cão, pelo que percebo significa que o animal está identificado, e certamente esterilizado, pelas entidades responsáveis, em Sófia.
Encontro notícias, bem como relatórios da “Animal Programs Foundation”, uma organização sem fins lucrativos que visa melhorar o bem-estar dos animais na Bulgária. No entanto o relatório é de 2011 (link). Encontro também o relatório da “World Society for the Protection of Animals” (WSPA), uma organização sediada em Londres, mas é de 2007 (link). Vejo também o já citado relatório do “Intergroup on the Welfare & Conservation of Animals”, da União Europeia, mas com dados que vão até 2018, apesar do relatório ser de 2020 (link).
Seria positivo existirem dados atuais e transparentes. Eu estou em 2023, estou a passear na Bulgária, e só vejo gatos e cães abandonados por todo o lado. Eventualmente as entidades de Sófia estarão agora a fazer um bom trabalho, os responsáveis até poderão ter formação específica e sensibilidade para o cargo (e não os meros voluntários que existiram nas décadas de 1990 e 2000, com os seus métodos obscuros), no entanto só aparece informação desatualizada, dos anos negros, em que os animais eram mortos a tiro – às dezenas de milhares. Porque a população os abandonava, ou considerava correto deixá-los viver na rua – cães com diferentes tipos de sociabilização, alguns de raças perigosas, que feriram e mataram pessoas por todo o país. Se tiverem dúvidas sobre isto leiam a notícia do Vagabond, citada no final desta página. A notícia foi escrita em 2008 – desde essa data morreram mais pessoas, nomeadamente Botyo Tachkov, professor na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, que morreu em 2012 atacado por vinte cães, em Sófia.
Até no Jardim Zoológico os cães entraram e mataram animais.

Quem fala da população búlgara – e do abandono dos seus animais – fala também da população portuguesa, atenção, pois esta não serve de todo como bom exemplo aos seus vizinhos europeus. Mas agora estou em Sófia, e é em Sófia que nos concentramos. Segue o relatório da Ecoravnovesie, relativo ao mês de julho de 2023 (data em que me encontro em Sófia). Já existem mais canis, além do de Gorni Bogrov, referido acima. Existem três ao todo, hoje, segundo se pode ver no website da Ecoravnovesie. O relatório diz o seguinte:
“(…) o número de cães capturados no mês foi de 150, dos quais 103 foram castrados e 83 foram devolvidos aos locais da sua captura. 18 cães foram internados na clínica veterinária municipal “Vrabnitsa” para tratamento. Os cadáveres de todos os tipos de animais coletados no território do Município Metropolitano no mês de julho foram 229”.⁵

Quantos é que existem ao todo, valha-me deus? 229 animais mortos recolhidos nas ruas de Sófia, durante o mês de julho de 2023?… Ainda bem que este cão não foi atropelado à minha frente. Eu até me pisguei daqui a toda a velocidade, com medo.

Bom, depois desta agitação, tentarei acalmar-me um pouco no sossego e silêncio do cemitério. Eu visito habitualmente os cemitérios dos países por onde viajo; gosto de conhecer os seus costumes fúnebres, e a própria arquitetura das sepulturas e jazigos: grandes trabalhos artísticos podem ser vistos, por vezes de autores consagrados. E em Lisboa participo nas visitas guiadas organizadas pela equipa de historiadores da Câmara Municipal de Lisboa, aos vários cemitérios de Lisboa.


¹ Street Hearts Bulgaria (s.d.) “Bulgaria’s dog problem”. Página consultada a 10 de setembro 2023,
https://streetheartsbg.com/about-street-hearts-bulgaria/bulgarias-dog-problem.html

² Intergroup on the Welfare & Conservation of Animals (2006-2020) “Case Study – Sofia, Bulgaria”. Página consultada a 10 de setembro 2023,
https://www.animalwelfareintergroup.eu/files/default/2022-09/29_9_2022_Sofia%2C%20Bulgaria%20Population%20Management%20Case%20Study.pdf

³ Watt, K. (2008, 2 janeiro) “Killers on the Road”. Vagabond, Bulgaria’s English Magazine. Página consultada a 10 de setembro 2023,
https://www.vagabond.bg/killers-road-2495

⁴ Wikipédia (s.d.) “Street dogs in Sofia”. Página consultada a 10 de setembro 2023,
https://en.wikipedia.org/wiki/Street_dogs_in_Sofia

⁵ Екоравновесие (2023, 11 agosto) “Справка за дейността на OП „Екоравновесие“ през месец Юни”. Página consultada a 10 de setembro 2023,
https://ecoravnovesie.com/2023/08/11/%d1%81%d0%bf%d1%80%d0%b0%d0%b2%d0%ba%d0%b0-%d0%b7%d0%b0-%d0%b4%d0%b5%d0%b9%d0%bd%d0%be%d1%81%d1%82%d1%82%d0%b0-%d0%bd%d0%b0-%d0%be%d0%bf-%d0%b5%d0%ba%d0%be%d1%80%d0%b0%d0%b2%d0%bd%d0%be%d0%b2/

<< >>