14 – Operação de resgate
Se não entro pela frente, talvez consiga entrar pelo lado. Isto é o lado da casa. Mas também não dá.
O Krisko ouve os gritos do gato, que se calhar é um dos seus filhotes. Não gosta do flash da minha máquina fotográfica, fecha os olhos e vai-se embora.
Bom, parece tão simples nas fotos. Já resgatei o bicho. É este elefante que grita por três; tem umas poderosas cordas vocais.
Voltemos atrás. Eu cheguei furibunda ao portão da casa abandonada. O gato aos gritos. Sempre aos gritos. Do grupo do Whatsapp, dos elementos da residência artística, ninguém respondeu.
Tenho que arranjar um escadote para saltar o portão e arrombarei quantas portas forem precisas.
Voltei a encontrar a filha da Maya, que ainda por cima está no 3º ano de Direito, e tratou logo de esclarecer-me “Aqui na Bulgária é proibido entrar em propriedade alheia, e está sujeito a punição” – mostrou-me ela numa mensagem escrita no telemóvel, no Google Translator. Eu respondi no meu telemóvel, escrevi em português e a app traduziu para búlgaro (em cirílico, portanto): “Eu pago as despesas. Prefiro ir presa a deixar o animal morrer ali dentro. E divulgarei a todos os meios de comunicação social a razão porque fui presa”. A Maya viu-me determinada e desistiu. Eu falei com a dona do hotel. Claro que não quis emprestar-me escadote nenhum. Escrevi no telemóvel e mostrei-lhe em búlgaro: “Vou chamar a polícia”.
Por esta altura eu já tinha algumas pessoas à minha volta. E o ar leve com que se apresentavam de início, começou finalmente a desaparecer. Finalmente vejo semblantes mais sérios. Finalmente apercebem-se que estou determinada e que não é correto deixar um animal morrer ali dentro, sem ação nenhuma da nossa parte. Estou cansada da indiferença humana perante tudo: pessoas, animais, natureza. Agora que o Papa Francisco visitou Lisboa, em agosto de 2023, a propósito das Jornadas Mundiais da Juventude, uso as suas palavras: “a globalização da indiferença”, como ele referiu num outro discurso. Cito-a a ele, como citaria o Papa Neófito, o rabino-chefe, o grande-imã, o dalai-lama, ou outro líder espiritual que as proferisse. Nem que eu tenha que derrubar esta casa inteira, e ir parar à prisão, este animal vai ser tirado dali.
Eu estava cada vez mais furiosa. Reparem que isto foi um acumular. Eu passei a manhã a pintar, a ouvir o gato a queixar-se, mas não reagi. Continuei a pintar. Ele há de sair dali, a mãe há de ir buscá-lo. Senão, vamos nós, abrimos a porta e vamos buscá-lo. Eu estava descontraída, portanto. Todavia, ao fim de dez horas, e depois de saber que não é possível entrar na casa, a coisa complicou-se. Aproxima-se a noite, e o gato está ali preso aos gritos.
Entretanto esqueci-me de comentar que eu vim em biquíni, da praia. Não vesti a roupa, porque o biquíni nem teve tempo de secar. A praia fica a 5 minutos do hotel. Vim com as roupas penduradas no braço. Aqui estou eu, portanto, a dizer que vou arrombar uma casa, e vou chamar a polícia – de biquíni, com todos vestidos à minha volta. Enfim, tenho que ir vestir-me, pelo menos para receber a polícia.
Mas os meus trajes menores não enganaram as pessoas que entretanto se reuniram ao meu redor. Todos búlgaros. Eu a falar através da app do Google Translator, e eles também. Estávamos em silêncio, portanto. Correção: a população búlgara falava entre si, de vez em quando, nem que fosse para transmitir oralmente as minhas palavras, lidas no meu telemóvel, aos restantes. Eu não disse uma palavra, só escrevi.
Não vou dizer quem me arranjou um escadote, porque efetivamente foi algo ilegal, entrar em propriedade alheia, e eu não quero arranjar problemas a ninguém. Consegui um escadote, já com várias pessoas à minha volta, de fora do hotel também, e pedi uns minutos para ir vestir-me, e calçar umas meias e uns ténis. Regressei rapidamente, de calções, t-shirt e ténis, pronta para saltar portões e arrombar portas.
Foi uma operação muito rápida. Eu saltei o portão, enquanto uma pessoa agarrava no escadote (comecei a subir sem sequer estar ninguém a agarrar, porque pensava que não iam ajudar), e depois tinha a porta de madeira fechada à minha frente. Decidi aplicar-lhe um golpe de karaté, como se vê no cinema. Estiquei a perna, que ficou completamente na horizontal, e espetei um golpe na porta.
Nem se mexeu.
Mau.
Se funciona no cinema, tem de funcionar comigo.
Nem hesitei, levantei imediatamente a perna, novamente, e atirei um golpe com bastante mais força. Eu estava com a adrenalina toda. A porta abriu um bocadinho só, está completamente emperrada, mas foi o suficiente para eu passar.
E agora tenho um mar de garrafões de plástico vazios, de 5 e 10 litros, que me chegam à cintura, e outra porta à frente, e outra à esquerda. Onde é que estás, gato? Vai gritando, para eu te ouvir. E ele sempre a gritar. Coitado. Estava à esquerda. Mais outra barreira derrubada, e eu a atirar garrafões por todo o lado, para ver-me livre deles. Deixam as casas abandonadas, com o telhado a cair, e nem os gatos podem entrar e abrigar-se. Estes garrafões estão aqui colocados com esse intuito, não acredito que o velhote que morreu fizesse coleção de garrafões.
Foi difícil ver o gato. Ouvia os gritos dele, no meio daquele entulho todo, garrafões de plástico e teias de aranha, e tentei perceber onde estava. Vi-o, finalmente. É amarelo, como o Garfield! Agarrei-o, saí da casa, passei-o a uma pessoa através do portão, passaram-me o escadote, subi, fiquei no topo do portão, icei o escadote e devolvi-o ao exterior, e saltei para o chão, agarrada aos ferros do portão.
Devolveram-me o gato, e eu tirei esta foto.
O escadote desapareceu tão depressa como apareceu. As pessoas dispersaram. Carros partiram. Eu fui pôr o gato no pátio interior do hotel, onde andam os gatos todos, bebés inclusive. A mãe há de aparecer. Ele continua a gritar desalmadamente. Deve ser mesmo filho do Krisko, o gato cantor, com tamanhas cordas vocais.
A Maya mãe escreveu-me isto no seu telemóvel. Traduzo para português:
Tivemos um caso destes recentemente, a mãe foi envenenada e os gatinhos ficaram sem mãe… nós alimentámo-los com uma pipeta.
A filha Maya.
As duas Mayas, mãe e filha.
A Dana e o Tobibi, da Argentina e Chile, respetivamente.
Felizmente comecei a ser ajudada por alguns dos meus colegas da residência artística. Fiquei muito chocada por ninguém responder à mensagem no grupo do Whatsapp. Pelo contrário, ignoraram a mensagem e continuaram a falar das suas artes e dos seus poemas. Eu ia tendo um ataque cardíaco. Estou sozinha. Que artistas são estes, indiferentes ao sofrimento alheio, e o que interessa são os seus poemas?… Mas não. Não responderam no Whatsapp, alguns nem viram a mensagem, porém outros estavam preocupados com o animal, e à medida em que iam chegando, perguntavam por ele, e gerou-se ali uma azáfama, como podem ver pelas fotos. A urgência era hidratá-lo, dar-lhe leite, ele é minúsculo ainda, precisa de mamar. Estava fechado há pelo menos onze horas, com 40 graus de temperatura durante a tarde. Ninguém tinha uma pipeta, pelo que tentaram improvisar. Nestas fotos eu mostro três soluções que os meus colegas tentaram. Misturámos leite com água, mas o gato não queria beber, acabou por ficar cheio de leite no pêlo. Se bem que aparentemente tenha bebido alguma coisa, pelo que disse a Nia. Eu nem dei conta. Já eram eles que andavam com o gato, e eu acelerada a cumprir instruções sobre vários tipos de pipetas, feitas com os copos do café, ou com um tubo muito pequeno de um creme, que a Nia foi buscar entre as suas coisas, e ainda a buscar leite e a misturar com água, para lhes dar. “A mamã virá buscar-te, meu amor”, dizia-lhe o Tobibi.
Eu finalmente comecei a respirar de alívio. Já não estou sozinha. A população búlgara mostrou-se sensível, ajudou-me, e agora estes colegas também.
Agora temos a segunda saga: a mãe gata precisa de recuperar o filhote. Esta supostamente é a mãe. O gato bebé já não está no hotel. A Nia viu a gata lá em baixo, junto ao rio, onde eu a via também, e onde eu tinha visto outro gato bebé – com certeza o irmão, e então agarrei no gato e fui a correr levá-lo até lá. Afastei-me. Esta foto foi tirada com zoom, pois eu não estava tão perto.
E agora vem um carro. O gato bebé afasta-se para a estrada, a mãe ignora-o, não o agarra, e agora vem um carro e ainda o atropela. Mandei parar o carro. Pus-me no meio da estrada e mandei parar o carro.
Isto parece uma série televisiva.
A mãe vira costas e vai-se embora. Com o gato cheio de leite de vaca, todo molhado, com o cheiro de tantas mãos humanas que o agarraram, ela recusou-o.
Estamos tramados.
E eis que de dentro do carro sai este casal de búlgaros, que deixa o carro ali mesmo, a impedir o trânsito, e vão eles próprios tratar do gato. Este rapaz tratou de agarrar no gato e foi procurar a mãe, junto ao rio. A Nia estava a explicar-lhes a situação em búlgaro, do terraço do hotel. Vendo que a coisa estava demorada, a rapariga foi encostar o carro, para não impedir o trânsito. Ele – este rapaz – desceu para a margem do rio, no meio da vegetação (eu atrás dele…) e foi deixar o gato bebé onde tínhamos visto a mãe gata. Ele tem o gato nas mãos.
E fomos todos embora. O gato bebé aos gritos, este tempo todo. E continuou aos gritos aqui em baixo. Bom, mas a mãe gata há de compadecer-se, há de ir buscar o filhote. Ela está aqui, que nós vimo-la.
O casal de búlgaros partiu no carro; eu subi ao hotel; o gato bebé ficou aqui em baixo.
Afinal o gato bebé não ficou lá em baixo. Entramos no episódio 4 desta série. Esta é a Christina, a irmã da Maya. Ela e o marido decidiram ir buscar o gato, dizendo que ali circulam cães vadios, e por conseguinte seria perigoso deixá-lo ali. Ficaram com ele esta noite. Amanhã tentarão novamente devolvê-lo à mãe.
Eu estou cansadíssima. Deixei o gato entregue e fui beber um copo com o resto do pessoal. A Mariane ia-se embora no dia seguinte, e pediu-me para me juntar a eles, esta noite, como despedida. Com tanta adrenalina nem consigo dormir. Fui com eles beber um copo, no café ao lado do hotel.
De regresso ao meu quarto no hotel, tenho a mesma companhia de todas as noites. São vários, uns 4 ou 5, mas todos fugiram (a uma velocidade enorme, estas criaturas devem chegar aos 40 km/h, ou coisa que o valha, com tantas patas) e só este se deixou fotografar. Meu amigo, vamos entender-nos, não vamos? – disse-lhe eu. Tu não vais para a minha cama, e eu não te mato. E também não vais para os meus chinelos, quando eu sair da cama e me calçar, pois não? Certo, estamos entendidos.
E assim dormimos todas as noites, em paz, eles na parede, e eu na cama.
A Mariane, que partilhou o quarto comigo umas poucas noites, também esteve tranquila com estes bichos. Ainda tentou apanhar um, com uma caixa, e libertá-lo na rua, mas não conseguiu, pois eles correm a toda a velocidade. Ela não lhes ligava, felizmente. Tínhamos muitas coisas no chão – as bagagens, e o meu nécessaire, por exemplo, com os produtos do banho, com tudo espalhado. De certeza que eles andaram a espiolhar tudo durante a noite. Mas aqui não há comidinha para vocês, meus amigos. O meu chocolate está escondido e fechado com fechos – esse sim, tem fechos, não está à vista, que eu não me deixo enganar.