097 – Templo Karni Mata – os Ratos Mandam
Esta foto mostra o templo Karni Mata e está mal tirada. Tinha todas as condições para ser uma boa foto: a luminosidade era boa, não chovia, não tinha pressa, podia focar à vontade, e escusava de ficar torta.
Falso.
Não tinha todas as condições para tirar uma boa foto.
Porquê?, podem perguntar.
Porque faziam 49 graus e uma secura constrangedora. Não sei (ainda…) o que é estar no inferno, mas não deve ser muito diferente disto. Estou a atravessar o deserto de Thar, é uma e meia da tarde, o sol está a pique. Almocei novamente na casa do médico (boa comida, caseira) e partimos de barriga cheia, eu e o Kailash. Parei agora aqui, para visitar este templo. O Kailash ficou no carro com o ar condicionado no máximo, e eu saí.
Ao fim de uns minutos deixei de raciocinar claramente. Não me interessa tirar fotos, não quero saber de templos, a máquina fotográfica está a queimar-me os dedos e tenho de largá-la. Os óculos escuros estão a queimar-me a cara. O relógio queima-me o pulso. Tudo arde que nem fogo.
Tornou-se quase uma questão animal, de sobrevivência – não posso estar aqui. Não posso estar aqui parada, tenho de fugir, tenho de proteger-me, não aguento. Não estou sequer a pensar claramente, só preciso de proteger-me.
E corri. Corri para uma sombra.
Corri no meio da rua para uma sombra.
Não se via vivalma. E corri depois para o templo. Já corri muitas vezes debaixo de chuva, mas nunca tinha corrido debaixo de sol, num quase desespero. Sobretudo gostando eu de altas temperaturas, e não tendo tido qualquer problema até agora, nesta viagem pela Índia. Quase que tinha a sensação de que a qualquer momento os meus braços pegariam fogo, saltariam chamas do meu corpo, da minha roupa. Nunca tinha vivido uma coisa assim.
Como é possível que viva gente aqui? Em que condições vive esta gente aqui, uma vida inteira? Não andam ao sol, claro, e o facto das ruas estarem desertas é bem significativo. Por isso se contam tantas histórias das loucuras que um ser humano comete quando se depara com uma questão de sobrevivência; ou como se vê nos filmes de Hollywood. Compreendi essa loucura. Pura e simplesmente deixei de pensar em fotografar, passear, conhecer. Quero lá saber disso tudo, só quero proteger-me.
Só faltava esta, agora. Fizeram-me descalçar para entrar no templo; tive de correr pelas esteiras porque não aguentava o chão a arder (sem esteiras então seria impossível), e quando entro dou com isto.
Mas ao menos tinha sombra, e pude então recuperar o raciocínio, deixou de haver a pressão da sobrevivência, pelo menos.
Estou descalça e há ratos por todo o lado. Já penso em algo mais, agora que não vou morrer assada. Agora tenho de pensar em defender-me de alguma mordidela de rato. Isto deve ser uma prova pela qual temos de passar nesta vida – primeiro sobreviver às chamas, agora defender-me dos ratos. Parece que estou num filme do Indiana Jones, com safaris de camelo pelo meio.
Pois estes amiguinhos estavam todos a beber leitinho. Ou aguinha, não pode faltar-lhes nada, já que alguns podem não apreciar leite…
Não sei onde este corredor vai dar. Os ratos andam de um lado para o outro. Eu estou descalça. Atravesso? Não atravesso?
Decidi não atravessar. Tive medo. Não sei o que está ali e depois quero voltar para trás, talvez espavorida, com os ratos todos atrás de mim, e ainda piso algum.
Mas vieram uns indianos, cheios de descontração, e meteram-se por ele afora.
Bom, vou também. Se os ratos não lhes morderam, também não vão morder-me a mim. Na realidade eu não tenho medo de ratos, tive hamsters inclusivamente, em criança, que me deram grandes desgostos quando morreram. Fazia sim alguma impressão ver tantos ratos juntos, e mais o seu odor, misturado com aquele calor. E eu descalça. Estar descalça é o pior de tudo. Ainda bem que levei três mil vacinas em Portugal, antes de vir para aqui.
Afinal o corredor dava apenas a volta ao templo, entrei do lado esquerdo e fui sair do lado direito.
Na próxima crónica, dado que esta já vai longa, será contada a história dos ratos e deste templo.