116 – Praça Tiananmen

Ao longo desta viagem – em Yunnan e posteriormente em Pequim – devo ter conversado com umas vinte pessoas. Explicaram-me muitas coisas, nomeadamente que na China os beijinhos não são usados como cumprimento. E que a Revolução Cultural foi um desastre. Eu fiquei surpreendida com a sua frontalidade e sinceridade, nesta matéria da Revolução Cultural. Pensei que era proibido falar destas coisas, e muito menos dizer mal. Perguntei-lhes se não vamos todos presos por estarmos a dizer mal da Revolução Cultural. Responderam-me que não, que podemos falar. Ora eu vejo notícias como esta:
“Um dos eventos mais importantes e devastadores da história moderna da China está ausente da imprensa do país esta segunda-feira, no dia em que se marcam os 50 anos da famigerada Revolução Cultural ditada pelo regime de Mao Tsé Tung (…) Os investigadores não podem aceitar dar qualquer entrevista relacionada com a Revolução Cultural”, denunciou (…) um estudioso deste período(…)”¹

Eu bem que tentei aprofundar – aqui e ali – o tema das questões políticas, da falta de liberdade de expressão, ou sobre a aceitação do Governo em geral; mas é um assunto onde não tive qualquer saída. Duas hipóteses: estão alheados da vida política (a certa altura pareceu-me que sim, que não percebem nem querem saber, e houve quem me respondesse inclusivamente que as suas vidas não são influenciadas por esta matéria) ou então têm mesmo receio e não querem comentar estas questões com uma estranha, e ainda por cima estrangeira. Nunca tive confiança suficiente para insistir, para questionar diretamente sobre casos concretos, como o prisioneiro político – e prémio Nobel da Paz – Liu Xiaobo, por exemplo, falecido há poucos dias atrás, uns dias antes de eu chegar à China. Faleceu com 61 anos, no hospital, com um cancro. Liu Xiaobo estava preso, condenado por subversão, depois de ter exigido reformas democráticas na China. Liu foi o autor de um manifesto, a “Carta 08”, um manifesto assinado por 303 intelectuais e ativistas dos direitos humanos, de múltiplas profissões (académicos, advogados, jornalistas, artistas) – e depois por outras oito mil pessoas – para promover a reforma política e a democratização na República Popular da China. A mulher de Liu Xiaobo continua, desde 2010, sob detenção domiciliária. De acordo com a Amnistia Internacional, Liu Xia nunca foi acusada formalmente de qualquer crime. Continuam hoje a sair notícias sobre ela e sobre o seu estranho desaparecimento desde a morte do marido:
“Estou muito sozinha / Não tenho o direito de falar / De falar alto / A minha vida é como uma planta / Estou deitada como um cadáver”, escreveu a poetisa chinesa, segundo excertos citados pelas agências internacionais.”²

O nome do ativista Liu Xiaobo entrou para a “lista negra” na internet. O bloqueio impede que mensagens e outros tipos de conteúdo contendo o seu nome sejam enviados. O “Grande Firewall” bloqueia softwares de mensagens como o WeChat (semelhante ao Whatsapp) e a rede social Weibo (semelhante ao Facebook), onde menções ao dissidente estão proibidas.
Mas não foi só o ativista que foi bloqueado na internet. A China também bloqueou pesquisas relacionadas ao Ursinho Pooh, da Disney, devido aos memes criados por utilizadores devido à semelhança entre o personagem e o presidente Xi Jinping. Não pode ser feito o download de imagens do desenho animado, e menções ao seu nome também estão proibidas nas redes sociais e nas plataformas de mensagens instantâneas.³

Em 2010, a organização Repórteres sem Fronteiras classificou a República Popular da China na posição 171º (entre 178 estados) no seu relatório anual “Índice de Liberdade de Imprensa”.
O panorama não é nada positivo, portanto. Estou agora em Pequim, em plena Praça Tiananmen, precisamente onde Liu Xiaobo foi detido pela primeira vez pela ligação aos protestos de 1989. Na altura era professor na Universidade de Pequim.

Caminhar agora na Praça Tiananmen – também conhecida pela Praça da Paz Celestial – tem portanto o seu impacto. Esta praça onde agora brincam as crianças, já esteve banhada de sangue de estudantes. O dilúvio de chuva que apanhei hoje, já foi um dilúvio de sangue há 28 anos atrás. Esta é a terceira maior praça pública do mundo, sendo superada apenas pela Praça Merdeka, localizada em Jacarta, na Indonésia, e pela Praça dos Girassóis, localizada em Palmas, no Brasil. Vi na televisão os acontecimentos de 1989, no dia 4 de junho, em que o governo chinês colocou fim a dois meses de ocupação estudantil nesta praça através de uma violenta intervenção militar, a qual provocou a morte de mais de duas mil pessoas e deixou outros milhares de feridos, segundo dados da Cruz Vermelha chinesa. Este movimento estudantil – e civil – pedia liberdades e mudanças políticas. O movimento transformou-se num protesto nacional, com manifestações pró-democracia em várias cidades do país. O número oficial de mortos nunca foi revelado.

Por ocasião do 25º aniversário destes acontecimentos, em 2014, encontro esta notícia no jornal Público:
Xi Jinping, o atual Presidente, o homem que se perfila como o segundo grande reformador da China depois de Deng, tem demonstrado que quer fechar cada vez mais o sistema de partido único autoritário e centralizado. Está a fazê-lo afastando líderes com outra linha de pensamento — alguns caídos na guerra contra a corrupção —, tornando mais rígido o controlo sobre os media, prendendo dissidentes, como os que foram detidos nas vésperas deste 25º aniversário (académicos, intelectuais, artistas).⁴
E foram aprovadas emendas constitucionais que eliminaram o limite de dois mandatos consecutivos de cinco anos para os presidentes do país. Ou seja, o atual Presidente Xi Jinping entretanto entrou no segundo mandato (em Março de 2018), e supostamente seria o último, mas não: já não precisa de afastar-se do poder, pode continuar indefinidamente. O retorno a uma liderança indefinida supõe uma rutura com o sistema criado por Deng Xiaoping, que estabeleceu um poder mais colegiado, com limites temporais para os altos cargos, a fim de evitar os excessos que causaram a acumulação do poder pessoal desmedido durante a época de Mao Tse Tung (1949-1976).⁵

No Diário de Notícias, por seu turno, e a propósito da comemoração do 28º aniversário dos acontecimentos na Praça Tiananmen, em 2017, encontro estes parágrafos bastante elucidativos:
“As escolas não ensinam sobre este incidente. Muitos adolescentes não sabem nada disto por isso não vêm [à vigília]. Penso que eles não estão interessados nestas coisas”, disse. (…)” O governo chinês exerce um controlo muito forte sobre as liberdades, movimentos pró-democracia ou direitos humanos”, acrescentou, observando que quem vive no interior da China “não consegue aceder a esta informação a partir da Internet ou mesmo na imprensa”.
Nascido em 1991, dois anos depois do massacre, o jovem Sulu Sou, da Novo Macau, a maior associação pró-democracia da região, tomou conhecimento da repressão através do YouTube – o acesso é livre em Macau, tal como em Hong Kong, ao contrário do interior da China onde é bloqueado. Sulu Sou recordou que o tema continua esquecido nas escolas, que “não ensinam os últimos 50 anos da história chinesa, especialmente o período desde que o Partido Comunista governa a China”, impedindo muitos estudantes de aprenderem a História “na sala de aula ou nos manuais escolares”.⁶

De forma que não consegui abordar devidamente estes temas. E notei grande alheamento. Aliás, eu própria senti receio em insistir. Não quero ser levada para interrogatório pelas autoridades chinesas, pensando eles que sou alguma espiã ocidental. Efetivamente não vim à China para questionar o seu sistema político. Mas creio que o panorama assusta qualquer um. Deixo o pavoroso relatório da Amnistia Internacional, em inglês: CHINA 2017/2018
Ou a sua tradução resumida, para português, na Sic Notícias:
Amnistia Internacional estima que a China esconde milhares de execuções

Seriam necessárias outras 116 crónicas (ou mais) para detalhar estes temas. O mais curioso é que estas crónicas são acompanhadas na China, mas esta parte nunca será lida porque o “Grande Firewall” vai simplesmente eliminar este texto da crónica 116. Só quem tem acesso a VPN’s e semelhantes artimanhas conseguirá lê-lo usando talvez o Google Translator.

Para se andar em Pequim – de atração turística em atração turística – temos de seguir os caminhos pré-definidos, com grades de ambos os lados, e de passar obrigatoriamente por controlos de raios-x. Não dá para sair dos caminhos. Existem grades e polícias por todo o lado. E são filas enormes. Pode-se perder mais de uma hora só para passar nestes controlos. Os menos resistentes fisicamente não se safam aqui, nomeadamente os idosos.
Acabei por nem alugar uma bicicleta, aqui em Pequim, pois iria andar muito pouco nela. Nestes caminhos definidos, com controlos de raios-x, as bicicletas não são permitidas. E dado que o meu hotel está mesmo ao lado da Praça Tiananmen, não iria tirar grande proveito da bicicleta. De qualquer forma informei-me sobre como se trata, pois gosto de ter sempre uma bicicleta comigo, dá maior mobilidade; e constatei que é um sistema moroso: é preciso ir de metro até Dongzhimen. Aqui mostra-se o passaporte, preenche-se os papéis e paga-se uma caução. Então teria de pedalar desde Dongzhimen de volta para o centro. Nem sei se deixam levar a bicicleta no metro, mas calculo que não, nunca vi nenhuma. E naqueles controlos todos de raios-x, muito menos. Todas as estações de metro têm controlos de raios-x, à entrada e à saída. Depois, no final da estadia, teria de ir entregar a bicicleta novamente a Dongzhimen, para me devolverem a caução. Muito pouco prático, este sistema. Eu não tenho tempo a perder. Não posso andar para trás e para a frente a entregar e buscar bicicletas, em horas de filas para passar nos raios-x. Eu quero que ma deixem no hotel, e que no final a vão buscar também. No ano passado foi assim que fiz em Viena e Budapeste, ou em qualquer parte, até mesmo numa pequena povoação da Amazónia, recordo-me. Bom, mas aqui é Pequim, e se queres, queres, se não queres, adeus. Pelo que fiquei sem bicicleta. E existem muitas – amarelas. Ainda hoje me pergunto se percebi aquele esquema. Pelo menos era a informação disponível na internet, em inglês. Recordo que obter informação em inglês na internet, na China, é um sarilho, conforme explicado na crónica 4. Se calhar este esquema das bicicletas amarelas já é diferente, mas não encontrei informação e não me dediquei a isso porque apostei em andar a pé.

Pedi a uma rapariga chinesa para tirar-me uma foto. Ela tirou-me várias, mas eu nunca consegui ficar sozinha, pois as crianças vinham tirar fotos comigo. Uma ovelha encaracolada dá muito nas vistas e as crianças (e os pais) devem achar graça. Resultado, tirei três ou quatro fotos sempre com crianças. E a rapariga devolveu-me a máquina fotográfica, pensando que eu estava satisfeita. Bom, mas eu quero uma foto sozinha na Praça Tiananmen!
Então tive de ir pedir a outra pessoa, desta vez um italiano muito gordo. Foi o que apanhei à mão, ele próprio tinha uma câmera idêntica à minha pendurada ao pescoço, assim é meio caminho andado, percebem os botões da minha. E ele lá me tirou a foto abaixo.


¹ Viana, Joana Azevedo (2016, 16 Maio). “Imprensa chinesa em silêncio nos 50 anos da Revolução Cultural”. Jornal Expresso. Página consultada a 21 Março 2018,
<http://expresso.sapo.pt/internacional/2016-05-16-Imprensa-chinesa-em-silencio-nos-50-anos-da-Revolucao-Cultural>

² “Viúva do Nobel chinês Liu Xiaobo escreve carta perturbadora”. (2017, 14 Dezembro), Diário de Notícias. Página consultada a 21 Março 2018,
<https://www.dn.pt/mundo/interior/carta-desesperada-da-viuva-do-nobel-chines-liu-xiaobo-preocupa-amigos-e-familiares-8985213.html>

³ McDonell, Stephen (2017, 17 Julho). “Why China censors banned Winnie the Pooh”. BBC. Página consultada a 21 Março 2018,
<http://www.bbc.com/news/blogs-china-blog-40627855>

⁴ Ferreira, Ana Gomes (2014, 4 Junho). “Tiananmen? “Se não me tivesse falado disso, nem me lembrava”. Jornal Público.  Página consultada a 21 Março 2018,
<https://www.publico.pt/2014/06/04/mundo/noticia/tiananmen-se-nao-me-tivesse-falado-disso-nem-me-lembrava-1638568>

⁵ “Assembleia Nacional Popular da China aprova presidência indefinida para Xi Jinping”. (2018, 11 Março), Diário de Notícias. Página consultada a 21 Março 2018,
<https://www.dn.pt/mundo/interior/assembleia-nacional-popular-da-china-aprova-presidencia-indefinida-para-xi-jinping-9177908.html>

⁶ “Vigília em Macau assinala 28º aniversário de massacre de Tiananmen”. (2017, 4 Junho), Diário de Notícias. Página consultada a 21 Março 2018,
<https://www.dn.pt/lusa/interior/vigilia-em-macau-assinala-28o-aniversario-de-massacre-de-tiananmen-8534808.html>

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