119 – Teatro em Pequim

Vou assistir a um espetáculo de Ópera Chinesa no Teatro Zhengyci. Segundo vi na internet, fica a uma estação de metro. Ora mais vale ir a pé. Perguntei na receção do meu hotel onde fica, e o rapaz apontou-me no mapa. Ele não tem a certeza onde fica exatamente, mas crê que é naquele ponto do mapa. São seis da tarde, tenho hora e meia para encontrar o teatro. Aí vou eu, com cinco pensos rápidos em cada tornozelo, na zona das tiras das sandálias. As chuvadas torrenciais desta manhã, na Cidade Proibida, não tiveram outro efeito senão impedir-me de tirar fotos e ferir-me a pele engelhada dos pés. Foram dois efeitos relativamente graves, mesmo assim.

Mas está bem, está. É um emaranhado de ruas. Não consigo chegar ao teatro, o qual, uma vez mais, fica num Hutong – uma rua estreita, pedonal, onde o trânsito não é permitido. Voltei a mostrar o mapa na rua, a duas ou três pessoas, mas cada qual aponta para um sítio diferente. Nenhum diz que não sabe. Todos sabem e todos apontam numa direção. Este comportamento é famoso entre os chineses, é curioso. Já tinha lido coisas na internet sobre isto. Será uma questão cultural. Não saber, não conseguir ajudar é quase considerado uma ofensa, pelo que tentam sempre ajudar, e acabam por orientar nas direções erradas.
Bom, ligo o Waze e sigo na direção que o Waze me aponta. Ele só tem caminhos para carros, mas pelo menos diz-me a direção. Não me afastarei – aproximar-me-ei sim do local.
Fica a nota de que por esta altura eu já tinha tentado instalar uma app de mapas pedestres, mas sem sucesso. As pesquisas em inglês na China não são famosas. Encontrei algumas apps, e cheguei a instalar duas, mas não surtiram efeito, não funcionam, não sei porquê. Hoje – já em Lisboa – claro que já tratei disso. Já instalei o “Maps.me”. (Espero que não voltes a andar perdida por falta de mapas pedestres, Rute Norte).
(Deixo a nota – uma vez mais – que me dá grande pica andar perdida. Não é em vão este meu desinteresse em obter apps com mapas. Enquanto ando perdida vou descobrindo as coisas. Mas desta vez trata-se de um espetáculo, com hora marcada, com bilhete reservado, e o qual eu quero muito ver, pelo que não é altura para brincadeiras do “Busca Bobby”).

Aproximei-me muito do local do teatro. O Waze diz-me que já cheguei, aliás. Mas não, o teatro fica num Hutong escondido, e eu estou numa avenida principal. Perguntei a esta rapariga, a qual anda a passear o cão. Ela é daqui, de certeza. Normalmente as pessoas passeiam os cães ao redor de casa. Em cheio. Ela sabia perfeitamente onde é o teatro, e levou-me com ela. Foi passeando o cão, o qual foi fazendo uns chichizitos pelo caminho, e deixou-me precisamente à porta do teatro. Seria muito difícil eu encontrá-lo sozinha. Um Hutong num autêntico emaranhado de ruas. Mas está bem perto do meu hotel, se calhar a 1 km, e à saída pus-me rapidamente lá, no regresso.

Pois cometi um erro. Afinal o espetáculo da Ópera Chinesa não é hoje. É só no dia 22. Eu fiz confusão. Hoje é o meu 22º dia de viagem, mas não é dia 22. Enganei-me. Foi com grande desilusão que percebi que hoje não há espetáculo nenhum de Ópera Chinesa. Nem amanhã. Só há daqui a uns dias, já eu estarei em Lisboa. Hoje há um bailado contemporâneo, que ainda por cima está esgotado. Queria tanto ver a Ópera Chinesa ao vivo. Só vi na televisão ou no cinema, nunca vi ao vivo.
A desilusão devia estar estampada no meu rosto: fiquei tão desalentada, ali à entrada do teatro, junto das bilheteiras, onde o rapaz de t-shirt branca está, que a senhora das bilheteiras acabou por chamar-me. Disse que me arranja um bilhete. Custa 480 RMB (cerca de 70€). Bolas, não me apetece gastar 70€ para ver um bailado contemporâneo agora. É muito caro.
Pelo que o desalento continuou estampado no meu rosto.
Mas não me fui embora. Continuei ali, em pé. Triste. (Só faltava fazer uma birra, como as crianças, e atirar-me ao chão a dizer que queria ver a Ópera Chinesa).
E a senhora voltou a chamar-me outra vez. Arranja-me outro bilhete por 280 RMB (40€). Alguém telefonou a desistir. É meu, aceito. Já não sei se estão a regatear os bilhetes, mas lá diz o ditado: “Quem espera, sempre alcança”. É preciso ter uma paciência e uma calma de chinês. E durante esta viagem pude comprová-lo várias vezes. Mais vale ter calma. Esperar. Alguma coisa pode acontecer. Alguma coisa pode mudar entretanto. E mudou mesmo. Se eu tivesse virado as costas quando ela me disse que os bilhetes estavam esgotados, ou posteriormente quando ela me apresentou o preço de um bilhete muito caro, eu teria perdido um dos mais fabulosos bailados contemporâneos que alguma vez vi, em Portugal, em Londres, em Nova Iorque, em Sidney, em Copenhaga, ou sei lá mais onde assisti a bailados.

Eu devo ter estado de boca aberta durante a peça toda. Foi fenomenal. De grande qualidade, aliando traços contemporâneos às tradições chinesas. Atuou a Companhia de Dança Moderna de Pequim, criada em 1995, atualmente sob a direção de uma mulher: Gao Yanjinzi, a qual falou no final e respondeu às perguntas do público. No programa que me deram à entrada pude ler entretanto que este bailado foi estreado em Veneza, em 2006, e que a Companhia de Dança Moderna de Pequim atuou em vários países, nomeadamente em Paris, Nova Iorque, Berlim, Canadá, Brasil e outros tantos. Pois foi um prazer vir conhecê-los na sua própria terra. A peça a que assisti hoje chama-se “Oath Midnight Rain” (traduzindo isto para português, é algo como “Juramento da Chuva da Meia Noite”) e, citando o programa: “explora a compreensão da coreógrafa sobre o Samsara Budista, o ciclo da morte e do renascimento e o momento luminoso entre a noite e o dia, entre o preto e o branco, entre o final e o começo”. O próprio programa tem uma citação:

Todos morreremos,
mas não vamos deixar este mundo para sempre –
a eterna promessa do renascimento
Trar-nos-á de volta.
— Provérbio Tibetano

E sobre o edifício do teatro: um antigo templo com origem na Dinastia Ming (1368–1644), entretanto recuperado, com uma estrutura interna totalmente em madeira. Pelo que leio no panfleto: “cobre uma área de 315 m²; o palco do 1º andar tem uma área de 6 m², e as quatro colunas suportam um palco no segundo andar, onde existe um gancho fixado para os artistas desempenharem os papéis de fantasmas e deuses, que geralmente são consideradas criaturas que voam. Este equipamento completo é cada vez mais raro sob as circunstâncias atuais de revitalização dos edifícios, pelo que este Templo-teatro se torna cada vez mais precioso”.

No final a coreógrafa Gao Yanjinzi falou bastante e houve a sessão de perguntas e respostas – tudo em chinês, pois claro –, pelo que me vim embora. À saída encontrei um dos encenadores (pelo que ele tentou-me explicar-me, num fraco inglês, seria um dos encenadores). Um rapaz novo que eu abordei porque esqueci-me do programa dentro da sala, no meu lugar. Podem ter a certeza que eu não saio daqui sem o meu programa. Então ele tentou ajudar-me – foi lá dentro à procura dele. Mas não o encontrou, ele não tinha a certeza de qual era o meu lugar, e eu entretanto percebi que alguém já o tinha ocupado. Eu estava mesmo ao centro (indevidamente, ainda por cima, pois o grupo de cinco pessoas que estavam na minha zona chegaram consideravelmente atrasadas – e quando chegaram foram para o canto, porque eu vendo cinco lugares vazios, sentei-me no melhor, mais ao centro, pensando que já ninguém viria) (Em Portugal nem sequer os deixariam entrar depois do espetáculo começar, e foi muito incomodativo os bailarinos já estarem a atuar, num teatro tão pequeno, e entrarem cinco pessoas com toda a agitação que isso provocou. E não foram os únicos, houve várias pessoas atrasadas, e deixaram-nas todas entrar. Sendo um teatro grande já é mau, então num pequenino nem se fala. Será um hábito que nuestros hermanos chineses terão que mudar). Bom, então deixaram-me a mim entrar para ir buscar o programa. Já a peça tinha terminado, recordo, e estava a autora a falar e a responder a perguntas. Quem ocupou o meu lugar também se apoderou do meu programa. Foi um pouco insólito. Efetivamente reparei que ninguém tinha aquele programa. Mas a mim deram-mo, numa tentativa de explicar-me ou aliciar-me a assistir ao Bailado, em lugar da Ópera Chinesa. Eu não podia estar ali a falar fosse o que fosse (além de que eventualmente a pessoa não falaria inglês) pelo que apontei para o programa, tirei-lho das mãos e desapareci, agachada, em silêncio. Ao menos acontece-me tudo. Foi tudo insólito. Eu andar perdida, eu achar o teatro, eu não ter bilhetes, eu já ter bilhetes, as pessoas a entrarem e a perturbarem o espetáculo, o meu programa desaparecido, e agora este rapaz, no final da peça, que me abordou em inglês. Perguntou-me se eu gostei. Eu adorei! – respondi-lhe. E então ele agradeceu, ficou naturalmente satisfeito, e explicou-me que era um dos encenadores. Não lhes poupei elogios. Adorei a peça, fiquei encantada com a mistura entre os traços contemporâneos e as tradições chinesas – repeti-lhe.

As fotos foram tiradas já no final, durante o qual os bailarinos desfilam precisamente para lhes serem tiradas fotos. Vê-se inclusivamente as pessoas no público com câmaras e telemóveis nas mãos, a fotografar.

Deixo a nota de que avisei a senhora da bilheteira de que podia libertar a minha reserva para o dia da Ópera Chinesa. Ela deu o ok e não fez nada. Não anotou em lado nenhum, não foi ver lista nenhuma de reservas. Ok. Devem aparecer ovelhas tresmalhadas à última da hora, antes do espetáculo começar, e acabam por ficar com os bilhetes, está visto. Pelo sim pelo não, quando cheguei a Portugal fiz um reply ao email da reserva, cancelando-a. Não quero que ninguém perca a Ópera Chinesa por causa de uma reserva que já não existe! Mas ninguém me respondeu também.

De regresso ao hotel. Seriam umas 9 ou 9.30h da noite. Não tive qualquer receio. As ruas de Pequim são muito tranquilas e existem guardas por todo o lado. Até porque é relativamente cedo, ainda há muita gente na rua. Eu é que estou estafada. Segundo a app do iphone, fiz 23 km a pé, hoje. Foi um dia muito intenso. E ainda a procissão vai no adro. Tenho mais dois magníficos dias em Pequim, de igual intensidade, pela frente. Se tomo um duche e caio na cama, digo que é mentira.

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