086 – Passagem da Fronteira para Timor Indonésio

O Valério e o Sanches disseram-me que esta casa, no Oecusse – mais precisamente no sub-distrito de Oesilo, foi onde o Eduardo Massa, da Timor MEGAtours, nasceu e cresceu. Fui espreitar a casa. Agora pertence ao Estado e tem inclusivamente um militar a tomar conta dela. Fizeram-me assinar um livro de presenças. No topo diz “Ministério da Administração Estatal”.

Um amigo de infância do Eduardo Massa, que descobri por acaso. Estava a fotografar a casa e as divisões, e este terá achado graça e perguntou-me quem sou eu. Respondi que ando a passear com a Timor MEGAtours, do Eduardo Massa, o qual nasceu aqui. E afinal eles conhecem-se. Telefonei ao Eduardo e passei-lhe o telemóvel. O telemóvel que ele tem no ouvido é o meu. Falaram em tétum e foi engraçado ver dois amigos de infância, com tantas recordações que terão, a falarem um com o outro tanto tempo depois, inesperadamente.

Chegámos à fronteira com a Indonésia. São 11h. Esta casinha pertence à parte de Timor-Leste. A seguir vamos para as casinhas indonésias. São uma dúzia de casinhas que temos de passar. É preciso mostrar os papéis em todas.

Todas as casinhas que temos de visitar. Ainda há mais do lado esquerdo. Isto é pior do que o jogo do monopólio e das casinhas que temos de passar. Em cada casinha do monopólio arriscamo-nos a ter de pagar qualquer coisa, e aqui também. O próprio relatório emitido pelo Banco Mundial (ver crónica anterior) sabe disso. Conforme já referi na crónica 74 quando atravessámos a outra fronteira, são quatro instituições a passar: alfândega, militar, imigração e polícia.

No peito do agente diz “Health Quarantine” (Quarentena de Saúde) e no ombro tem as siglas “KKP”: Kementerian Kelautan dan Perikanan, ou seja, Ministério dos Assuntos Marítimos e das Pescas.

No peito tem escrito “Polri”, ou seja, Polícia Nacional.

“Bea Cukai” significa alfândega.

Na parte indonésia de Timor vêem-se muitas imagens destas, de militares com armas nas mãos. Assusta um pouco. Há muitos complexos militares. Pergunto-me se não será uma maneira fácil de ocupar a população masculina. Não é propriamente agradável para um turista percorrer um país com tantas imagens de militares e armas. Irei ver e fotografar uma série de pinturas como esta. E considero este fenómeno interessante e merecedor de um estudo sociológico e cultural aprofundado sobre a nação e o povo indonésio. (Se calhar já existe?). Enfim, afinal de contas tudo é muito recente, a ocupação de Timor-Leste terminou há 19 anos apenas. Será altura de começar a lavar a cara, a apagar estas coisas tão pouco amigáveis. Curiosamente os contactos que tive com agentes indonésios, sobretudo aqui nas fronteiras, não têm nada a ver com esta imagem agressiva que passam. Fui sempre bem tratada, com cuidado até. Aqui – nesta fronteira – tive de ir à casa de banho. Um rapaz fardado ouviu o Valério (que falou em indonésio) e imediatamente me levou à casa de banho, com delicadeza até. Pedem-me fotos, sorriem, são curiosos. São outra geração, afinal de contas. Um militar é sempre um militar, em guerra terá que agredir e matar, mas em tempos de paz todos têm as suas famílias, mães, pais, mulheres e filhos, estudos e educação. Eu própria queria ter seguido a carreira militar. Se voltasse atrás, no passado, mudaria isto na minha vida. Portanto é uma questão do Estado indonésio começar a mostrar outra cara, mais pacífica. Os tempos das invasões e das torturas supostamente já lá vão.

Uma rapariga a viajar sozinha. Sozinha mesmo sozinha. Eu tenho o Valério (e agora o guia Sanches, temporariamente, na parte da Indonésia), tenho a pickup e uma agência de viagens – a Timor MEGAtours – a tratar-me de tudo e a acompanhar-me com atenção e cuidado. Só o Valério já é quase o meu guarda-costas. Admiro a coragem de uma rapariga assim, a viajar nas “microlets”, as carrinhas privadas que transportam pessoas, com todos os riscos que isso implica e os acontecimentos que já sucederam no passado nestas “microlets”, nomeadamente no Brasil. Um casal entrou numa, e pelo menos ela nunca mais saiu. Só apanhar um táxi em Lisboa, às tantas da manhã, já me deixa com um nervoso miúdo, quanto mais uma carrinha privada na Indonésia ou onde quer que seja. As pessoas dizem-me que sou muito corajosa em viajar sozinha, mas eu não me acho assim tão corajosa. Pelo menos comparada com estas pessoas. Eu tenho sempre alguém a cuidar de mim, alguém atento, se apareço ou não, onde estou, com um número de telefone permanente. Claro que há riscos, mas podem ser minimizados. Tal como comentei na crónica 13, qualquer um de nós pode morrer atacado à porta da sua casa. Ou numa tranquila aldeia em Portugal. Portanto é com espanto e até temor que olho a bravura de uma menina bonita como esta, que me disse o país de origem e eu esqueci-me (é da Bélgica?); ainda trocámos algumas palavras – perguntou-me se lhe dava boleia até Kefa – claro que dou. O Valério ajudou-a a colocar a sua pesada mochila no tabuleiro da pickup (e ela fez-me referência à pujança de um rapagão como o Valério – rimo-nos as duas) mas depois acabou por desistir ao saber que após a fronteira eu iria seguir na bicicleta, mais lentamente portanto. Então tirou a sua mochila e foi contratar uma microlet para a levarem.

O militar sorridente da “TNI”, ou seja, Tentara Nasional Indonesia – Exército Nacional Indonésio, indicou que precisava de tirar-nos uma fotografia para passarmos a fronteira. Tirou uma foto a cada uma de nós. Achei isto muito sofisticado, tirar-nos uma fotografia com o telemóvel, e certamente transferi-la por email para o computador, ou bluetooth, ou seja o que for. Nada disso, o malandro queria mesmo ficar com uma foto das duas raparigas. Eu até tiraria uma selfie com ele, tantas selfies que já tirei nesta viagem, e ele ficaria com melhor recordação – ao menos eu estaria na sua companhia, mas pronto, o rapaz é tímido (enfim, não muito, dado que está em funções militares e mesmo assim é atrevido a tirar fotografias). Tal como comentei na crónica 75, na outra fronteira que passámos, estes TNI metem-me medo, com o seu aterrorizante passado. Mas tal como na crónica 75, também este rapaz ainda usava fraldas, nesse tempo.

Finalmente passámos a fronteira. Passámos as casinhas todas. Mostrámos a papelada toda.Temos tudo em ordem. Finalmente vou dar umas pedaladas em território indonésio.

Os miúdos da ilha de Timor são todos iguais, já dá para perceber logo nos primeiros minutos de bicicleta por Timor indonésio. Miúdos, ou aqui adolescentes. Seja na parte de Timor-Leste, seja na parte de Timor indonésio, a festa é a mesma, como se pode ver pelas fotos. Eu estou atrás da professora. Quando vi esta foto no computador nem eu própria me via. Eu estou na foto muito bem rodeada!

Fui chamada por esta senhora e mais outra, que não fotografei (e arrependi-me). As senhoras chamam-me, curiosas. Eu vou ter com elas, paro a bicicleta e vou ter com elas. E agora falar indonésio é mais complicado. O tétum tem muitas palavras parecidas ao português, e vamo-nos desenrascando. Mas a língua indonésia já não tem nada a ver. O Valério já está a ensinar-me algumas coisas e já sei dizer “Bom Dia” – é “Selamat Pagui”. Em tétum, bom dia… é bom dia. Aqui tenho que lembrar-me do Selamat Pagui. Concentrar-me na estrada, na condução pela esquerda, estar atenta aos cumprimentos, e lembrar-me do Selamat Pagui instantaneamente, ao passar na bicicleta, confesso que não está a dar bom resultado. Comecei a dizer “Hello” e todos respondem. Curiosamente em Timor-Leste ninguém responde ao “Olá” e ao “Hello”, por isso rapidamente substituí pelo “Bom dia” (e respondem-me sempre). Aqui na parte indonésia respondem ao “Hello”, pelo que desisti do Selamat Pagui. Além de que indo a determinada velocidade na bicicleta, as pessoas até ouvem o Selamat, mas o Pagui já era.

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