064 – Os Pequenos Pescadores de Ataúro & Local de Degredo (Cont.)

Escola Secundária Técnico-Vocacional de Pesca de Ataúro (Ensino Público).

Ataúro foi porém local de deportações não só de timorenses durante a ocupação indonésia, mas também de portugueses durante a colonização portuguesa. Aliás, durante a colonização portuguesa, não era só o ilhéu de Ataúro que era local de deportações, era a própria ilha de Timor. Deixo alguns extratos ligeiramente adaptados para estas crónicas, de um estudo muito interessante de Madalena Salvação Barreto:

“A presença portuguesa em Timor, desde a chegada dos primeiros missionários nos inícios do século XVI até meados do século XIX, resumiu-se a apenas alguns pontos ocupados no litoral, tendo o interior do território permanecido largamente isento de uma presença territorial expressiva que marcasse a soberania ou assinalasse uma colonização do espaço feita por comunidades de portugueses.
Timor era uma ilha retalhada em pequenos reinos independentes, pequenas “repúblicas democráticas” bem diferenciadas política, social e etnologicamente umas das outras, cada uma governada pelo seu Liurai (régulo) que fazia guerra ou alianças políticas e matrimoniais com os vizinhos, ou com o Governo português, conforme entendia. Somente a partir de meados do século XIX, continuando o processo já no século XX, é que a autoridade portuguesa se estendeu a todo o território timorense, organizada administrativamente por postos de comando, onde um oficial militar deveria gerir a vida da sociedade timorense. A verdade é que as terríveis condições de comunicação com o exterior e mesmo a nível interno, transformaram Timor numa Colónia praticamente sem colonos europeus. Mesmo a guarnição militar era na sua grande maioria originária das restantes Colónias. Numa colónia “sem colonos”, os poucos europeus que ali viviam eram missionários, militares ou degredados. Os primeiros registos encontrados de degredados a serem enviados para Timor datam do século XVIII. Para além dos degredados, são escassas as referências a indivíduos de origem europeia que se tenham fixado nesta ilha. Ao longo da história, o degredo para as várias possessões ultramarinas foi muitas vezes utilizado pela coroa portuguesa como pena por crimes cometidos. Não só pelo Governo central de Portugal continental, mas também de outras colónias. Há registos de vários presos enviados pelo Governo de Macau. Na realidade, tratava-se de tentar aproveitar os presos para resolver o problema da falta de capital humano europeu nas colónias e em Timor em particular. De resto, mesmo os militares que prestavam serviço em Timor, na sua maioria, eram enviados para aquele local como castigo e raramente a título voluntário. Por esta razão, Timor foi ganhando fama de Colónia penal e assim ninguém queria ali servir. E, infelizmente, antes do século XX, poucas informações temos relativamente ao tempo de permanência do geral dos degredados na Colónia, onde viveram, o que fizeram durante a sua estadia, como foram integrados na vida social, etc…

Existiam dois campos de concentração, um no enclave do Oecussi e outro na ilha de Ataúro. No Oecussi existia um verdadeiro campo de concentração, com profundos e largos fossos cheios de água e, em volta, os postes de arame farpado. Metralhadoras em posição vigiavam o campo de um alto próximo. Um comandante, à frente de uma força indígena e empunhando um chicote, dava ordens. Tinha dois barracões de madeira cobertos com folhas de palmeiras, ambos situados nas imediações de um arrozal, terreno húmido e povoado de milhões de mosquitos. Não havendo nem quinino nem mosquiteiros à disposição, muitos terão sucumbido ao paludismo.
Num relatório, um médico reportou que vários deportados já haviam chegado fortemente debilitados pela longa e dura viagem e que nestas condições, em vez de recuperarem, muitos poderiam mesmo morrer. A alimentação que lhes era distribuída, milho cozido e vegetais, era insuficiente do ponto de vista nutritivo. A má nutrição e as más condições em que alguns viveram, quer nos campos de concentração, quer nas prisões, foram apontadas como causas diretas de morte de alguns deportados.

Em 1932 o Governo central acabou por dar ordem de soltura a estes deportados, embora sem permissão para sair da Colónia de Timor. Assim, é de crer que a passagem de cerca de 600 deportados por Timor ao longo dos anos 1931 e 1933, terá deixado marcas na História. A certa altura o número de deportados quase dobrava o da população civil europeia ali residente.
Considerando que os deportados estavam interditos de sair da Colónia, que foram enviados para diferentes pontos do território onde passaram a ter residência fixa e obrigação de se apresentar todas as semanas, e sendo que nestes locais a presença europeia era muito ténue, poderemos pensar na possibilidade de a presença deste grupo de deportados ter contribuído mais para a colonização e para o intercâmbio cultural entre portugueses e timorenses, que a simbólica presença portuguesa dos três séculos anteriores.

No que concerne às relações profissionais dos deportados, sabemos que os primeiros anos não foram fáceis. Houve alguns entraves ao imediato e próspero desenvolvimento dos estabelecimentos comerciais iniciados por deportados, ainda que mais tarde muitos tenham conseguido vingar. Aquando da chegada deste grupo ao território, a grande maioria do comércio em Timor estava nas mãos dos chineses e, segundo José Simões Martinho, estes “não tinham quaisquer problemas em sentar-se como iguais ao lado de um indígena, fosse para negociar ou para socializar. Pelo contrário, os deportados impunham uma relação de hierarquia, exigindo o respeito da sua “superioridade”, o que fazia com que o timorense tivesse pouca vontade de comerciar com o branco”. Para além disso, a característica de prisioneiro destes novos comerciantes (mal conotada também na sociedade timorense) também dificultou a aderência da população às novas lojas. Foi o caso de dois deportados (Teófilo Duarte não refere os nomes) que abriram uma padaria e uma barbearia em Díli. No início, ambas as lojas passaram por grandes dificuldades porque a população tinha medo que o padeiro envenenasse o pão ou que o barbeiro ferisse algum pescoço com a navalha de barbear. Segundo Teófilo Duarte, foi preciso ser o Governador a dar o primeiro passo e frequentar tais lojas. Só ao fim de algumas semanas e vendo que o Governador continuava vivo e em forma, é que as populações acederam a frequentá-las também.

Ambos os autores referem as idas ao mercado como o acontecimento social da semana. O mercado era um lugar essencial na sociabilidade timorense e também para os europeus que com eles queriam contactar. Para Timor, só foram deportados homens. Mulheres europeias seriam muito provavelmente somente as senhoras que acompanharam os maridos que para ali foram destacados como militares ou administrativos. Sabemos também que os deportados tinham uma série de obrigações dada a sua condição. Uma delas era a proibição de se relacionarem socialmente com qualquer outro europeu. Assim sendo, estes deportados, todos homens, estavam restritos a relacionarem-se somente entre eles ou com a população timorense. Tendo isto em conta, o mercado era o local onde os deportados, para além das compras para a semana, procuravam conhecer mulheres timorenses. Muitas famílias se criaram nesta altura, dando origem a numerosos filhos luso-timorenses.”¹
(Fim de citação)

Este delicioso estudo histórico, sociológico e antropológico tem nove páginas (entre as páginas 14 e 24 do documento citado abaixo) e recomendo vivamente a sua leitura completa.


¹ Barreto, Madalena Salvação (2014, Agosto) “Deportação, colonialismo e interações culturais em Timor: o caso dos deportados nas décadas de 20 e 30 do século XX”. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL). In Atas da 1ª Conferência Internacional “A Produção do conhecimento Científico em Timor-Leste‟. (2015, Julho). Coordenação de Francisco Miguel Martins e Vicente Paulino. Edição: Unidade de Produção e Disseminação do Conhecimento do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa da UNTL. Página consultada a 4 Dezembro 2018,
<http://repositorio.untl.edu.tl/handle/123456789/180>

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