014 – Um Cemitério e Uma Aldeia
Pedi ao Valério para me tirar uma foto na bicicleta, mas o Valério mal se apanha com a máquina fotográfica dispara logo uma porção de fotos, ainda eu vou a caminho. Esta foi uma delas.
Agora sim, já em pose, antes de nos separarmos e só nos voltarmos a ver daí a uns 45 minutos. O Valério vai seguir caminho, e eu vou passeando mais lentamente atrás dele.
Agora vou ver o que se passa nesta aldeia.
Claro que as pessoas me viram a andar de bicicleta, pelo meio das casas, e vieram falar comigo. Não falam português, mas o tétum tem palavras em comum, como já referi, além de que refiro os nomes das terras por onde ando a passear, bem como os próximos destinos, que todos entendem.
Creio que isto foi o que mais me custou nesta viagem. Vi muitos cães pele e osso, como este, ou bastante piores. Há muita pobreza em Timor, sim, quanto mais alimentar cães abandonados. Ou semi-abandonados, pois eles andam por aqui, nas aldeias, no meio das casas, a ver se encontram alguma coisa para comer. Este ainda brincaram com ele, a pintá-lo. De acordo com o último Relatório de Desenvolvimento Humano publicado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), 46,8% da população de Timor-Leste vive abaixo da linha de pobreza, com menos de 1,90 dólares por dia¹. São dados do relatório de 2016, dado que o update estatístico de 2018, à data a que escrevo hoje (Setembro 2018) ainda vai ser lançado nesta matéria.
O povo timorense sofreu atrocidades inimagináveis nas mãos dos indonésios durante a ocupação que durou 24 anos, entre 1975 e 1999. A ocupação envolvia tortura rotineira e sistemática, esterilização forçada das mulheres, execuções extrajudiciais, massacres como o massacre de Santa Cruz em 1991, e fome deliberada. A população morreu à fome há poucos anos atrás, já eu era nascida. Eu própria tenho de pensar, ao ver este cão esquelético – este e muitos outros que em breve começarei a alimentar na medida do possível, com os restos da minha comida, que não permito que vá fora – eu própria tenho de pensar, ia a dizer, que as coisas aconteceram tão recentemente que é normal que os cães apareçam em último lugar nesta história. A questão é que se passaram 19 anos. Felizmente muita coisa progrediu e continua a progredir em Timor-Leste. A idade média da população hoje é de 17,4 anos². Uns espantosos 17,4 anos. Naturalmente, e infelizmente, dada a alta mortalidade no tempo da ocupação indonésia, e também a fuga da população do país. A guerra acabou, as crianças nasceram, estão hoje a tornar-se adultos. E começam a aparecer os primeiros obesos. E é altura de começar a pensar mais além. É a próxima etapa.
Logo por azar, se repararem nas fotos desta crónica, foi nesta aldeia e cemitério contíguo que encontrei as pessoas mais rechonchudas – digamos assim, de forma ligeira. Se eu visse pessoas de pele e osso, ainda vá. Mas eu vejo aqui gente excessivamente rechonchuda até. Sinal do progresso. Bem que podiam dividir um bocadinho de arroz com esta alma.
Depois vê-se outra situação ainda: o cão que pertence a alguém está bonito e bem alimentado. É estimado e encontrei também muitos donos já a mimarem um animal de estimação. Sinal do progresso também. O cão ali ao lado, abandonado, já não tem direito a nada, porém. Convivem os dois, e um está constrangedoramente esquelético. Então mas não se pode dar um bocadinho da comida de um ao outro?
São gestos pequenos, gestos ínfimos, mas tão importantes. Quem ainda não se lembrou disto, dos cães esqueléticos e abandonados que por aqui andam, são as associações de proteção de animais. Andam por todo o lado, por todos os países, mas em Timor ainda não se lembraram de vir cá espreitar. Gatos já não vi tantos. Se calhar são mais esquivos, não sei.
¹ Human Development Report 2016 ,“Table 6 – Population living below income poverty line”, página 219. United Nations Development Programme (UNDP). Página consultada a 23 Setembro 2018,
<http://hdr.undp.org/sites/default/files/2016_human_development_report.pdf>
² Human Development Report 2018, “Timor-Leste – Human Development Indicators, Demography, Median age (years)”. United Nations Development Programme (UNDP). Página consultada a 23 Setembro 2018,
<http://hdr.undp.org/en/countries/profiles/TLS>