010 – Entremos em Suas Casas

Terminado o almoço, partimos de carro – eu também. Mais ao final da tarde irei retomar a bicicleta. Faltam 58 km para chegar ao destino de hoje: Baucau, distrito onde nasceu o Bispo D. Ximenes Belo, Nobel da Paz em 1996. O Bispo recebeu o Nobel, e também José Ramos-Horta (o qual nasceu em Díli). Foi o reconhecimento internacional da causa timorense, este duplo Nobel.

Igreja de Laleia, vila onde nasceu Xanana Gusmão. A igreja foi construída pelos portugueses em 1933. Percorrer Timor é percorrer a história.

O Valério encostou a pickup e eu fui tirar umas fotos por aqui. As antenas parabólicas ao lado das cabanas têm a sua graça. São os novos tempos. Antes era amor e uma cabana. Agora é amor, uma cabana e uma parabólica.

As crianças são as primeiras a dar sinal. “Malai! Malai” – chamam-me. Significa “estrangeira” e vou ouvir muitas – muitas – vezes esta palavra. Depois os adultos vêm espreitar também. Aqui estou na companhia do Valério, que lhes explicou em tétum quem sou eu e o que estou a fazer aqui. Basicamente a informação é que venho de Portugal e ando a passear. A palavra “passear” será igual em tétum, todos percebem e como tal vou passar a usá-la com frequência, nas minhas conversas com as pessoas. Venho de Díli, vou para Baucau, e estou a passear na bicicleta. “Bicicleta” também é igual. A gente foi-se entendendo. Há a ideia de que em Timor se fala português, mas dado que o ensino do português esteve proibido durante os 24 anos da ocupação indonésia (1975-1999), toda uma geração cresceu sem ouvir uma palavra em português. E se a dissesse, provavelmente sofreria sérias represálias. Os esforços atuais de Portugal incidem precisamente em voltar a pôr o português – que é uma das línguas oficiais de Timor-Leste, a par com o tétum – a mexer.

Esta família convidou-me a entrar e deixou-me fotografar a sua casa.

AMP, Aliança de Mudança para o Progresso, vencedora das eleições legislativas em Maio de 2018. Trata-se duma coligação entre três partidos: CNRT (Congresso Nacional para a Reconstrução de Timor-Leste, liderado por Xanana Gusmão); PLP (Partido de Libertação Popular, liderado por Taur Matan Ruak, antigo líder militar das Falintil (Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste) durante a ocupação indonésia, bem como ex-Presidente da República; e Khunto (Kmanek Haburas Unidade Nasional Timor Oan, designação em tétum que significa Enriquecimento da Unidade Nacional dos Filhos de Timor, liderado por José dos Santos Bucar, conhecido por Naimori).
A AMP venceu por maioria absoluta, em Maio de 2018, tendo ficado com 34 dos 65 lugares no Parlamento Nacional (mais de 305 mil votos ou 49,56% do total). Atualmente, em 2018, Taur Matan Ruak é o Primeiro-Ministro de Timor-Leste, e o Presidente da República é Francisco Guterres, conhecido popularmente como Lu Olo, também presidente do partido político Fretilin (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente).
A coabitação entre um presidente e um governo oriundos de partidos rivais nunca é fácil, sobretudo mantendo o Presidente da República as funções de presidente de um partido. Vejo notícias onde Xanana Gusmão questiona se as decisões tomadas pelo Presidente da República serão tomadas em nome da nação ou em nome do partido.

Não querendo entrar muito por temas políticos (por esta altura já devo ter lido umas centenas de páginas sobre Timor-Leste – oportunamente haverão referências pontuais à sua história, nestas crónicas; também li sobre os enredos e enleios políticos e partidários – e poupo-vos – e temos agora as questões da atualidade económica, nomeadamente as negociações das fronteiras marítimas, as negociações sobre a exploração dos campos de petróleo e gás, as receitas do petróleo, as relações internacionais e a ajuda internacional – todos serão temas a abordar em crónicas futuras. Vamos com calma que ainda agora cheguei a Timor – e vocês também, que acompanham estas crónicas); deixo já sim uma nota rápida sobre o sistema político vigente em Timor-Leste:

O chefe de Estado é o Presidente da República, o qual é eleito por sufrágio direto e universal para um mandato de cinco anos, num sistema de eleição a duas voltas. Se nenhum candidato obtiver a maioria absoluta dos votos na primeira volta, haverá uma segunda volta entre os dois mais votados. Ao Presidente da República cabe-lhe nomear o Primeiro-Ministro, tendo em conta os resultados eleitorais. Pode, igualmente, vetar legislação, suscitar a verificação da constitucionalidade das leis e dissolver a assembleia parlamentar.

O Primeiro-Ministro preside ao governo. As eleições legislativas permitem compor o Parlamento Nacional, cujos membros são eleitos também para mandatos de cinco anos. O número de lugares varia entre o mínimo de 52 e o máximo de 65. Existe uma cláusula-barreira que reserva os lugares parlamentares aos partidos e coligações que obtenham, no mínimo, 4% dos votos válidos no conjunto do país e das principais comunidades timorenses no exterior (Austrália, Portugal, Reino Unido e Coreia do Sul).

Eles estenderam as mãozinhas para um aperto de mão, algumas engorduradas do pacote de batatas fritas que um deles tem na mão, ou qualquer outro acepipe frito. Apertei-as uma a uma, num gesto que irá repetir-se muitas vezes. Mãozinhas pequeninas e já com apertos de mão tão firmes. Notei muito isto, ao longo desta viagem. Estes miúdos timorenses já sabem dar apertos de mãos firmes. Melhor do que muitos homens, que dão apertos de mão tão deslavados. Estes miúdos apertam-me a mão com força, ossos nos ossos, e eu retribuo.

Fui pouco depois aos arbustos fazer xixi, não sem algum receio que me aparecesse um crocodilo a qualquer momento. Seria insólito, morrer nas garras dum crocodilo, com os calções em baixo, indefesa. Bom, pelo menos seria algo mais glorioso, morrer nas garras dum crocodilo timorense, do que morrer num acidente de viação em Portugal, por exemplo. A minha campa teria algo bem interessante escrito. E um crocodilo desenhado, espero.
Curiosamente ainda estou a usar um rolo de papel higiénico que trouxe da China, no ano passado, sem buraco no meio. É compacto, ocupa menos espaço e ando com o que resta dele na bolsa da cintura, para estas ocasiões. As voltas que o rolo de papel higiénico já deu. Da China para Portugal e de Portugal para Timor. Em Timor morrerá.
(Esta crónica está muito fúnebre… até um carro funerário apareceu… deve estar já a antecipar a de amanhã).

Por baixo de “Manatuto” está Laleia.

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