009 – Chegada a Manatuto – Almoço

A placa indica “Manatuto” em frente. O distrito onde o grande Xanana Gusmão nasceu, a 20 de Junho de 1946. Quem é que sabe que o verdadeiro nome de Xanana Gusmão é José Alexandre Gusmão? Deixo a transcrição de algumas palavras suas:

“Qual é a sua primeira recordação de infância?
Nasci depois da II Guerra Mundial, numa terra em que a sociedade não dava importância ao dinheiro. Vivíamos com simplicidade. O meu pai era professor e andava de terra em terra. Lembro-me da genuinidade das pessoas, sem pensar demasiadamente no futuro, uma existência serena. Foi uma infância pacata e com a alegria própria de uma criança.

Com os pais professores primários, como é que se lembra da educação que teve e como é que isso influenciou a sua personalidade?
Diria que foi o próprio sistema que influenciou, e era duro. Naquela altura era a época da régua. Na minha geração era esse o sistema… Tens de aprender, tens de estudar… E se não te comportavas consoante esses parâmetros eras castigado, ficávamos de joelhos, tínhamos deveres de casa suplementares. Mas não deixa de ser verdade que isso criou-nos, no essencial, um sentido de disciplina e uma motivação para o estudo.

O Xanana interrompe a frequência do seminário e sai com 16 anos dos jesuítas. Por razões financeiras?
Talvez tenha saído mais cedo, já não sei bem… Mas não foi especialmente por razões económicas e sim porque não fui escolhido para continuar.

Ah!, não foi ‘escolhido’ para seguir os caminhos do Senhor… O seu primeiro emprego foi de topógrafo?
Quando saí do seminário, pretendia terminar os estudos no liceu, mas lá em casa éramos dois rapazes, e os outros filhos [quatro¹] eram raparigas, e o meu pai disse-me: “És rapaz, tens de ajudar a tratar das tuas irmãs.” E fui ensinar Português na escola chinesa e depois consegui integrar-me na equipa de uma missão portuguesa que estava a fazer o levantamento das ribeiras. Foi assim que pude ganhar os meus primeiros ordenados e viver em Díli.
(…)

Conte lá como é que o Alexandre Gusmão passa a Kay Rala Xanana Gusmão?
As pessoas às vezes ficam dececionadas quando lhes conto esta história e reagem porque pensavam que era um nome de guerra. Como jornalista, eu publicava artigos enquanto João Alexandre Gusmão e assinava JAG. Mas quando queria ser mais corrosivo assinava de forma diferente. Naquela altura havia uma cançoneta que tinha um refrão ‘xalalala’, e eu adotei-o. Deixei o ‘lalala’, por parecer muito feminino, e passei a assinar Sha Na Na. Os amigos liam os artigos e questionavam-se: “Quem será este palerma do Sha Na Na?!” Eu retorquia que não sabia e adiantava que o meu artigo estava lá, com as iniciais JAG! Num belo domingo, quando vinha das compras, passei por eles e cumprimentei-os, em direção a casa. Deixaram que me distanciasse, e todos, em uníssono, gritaram: “Shanana!” Inadvertidamente, voltei-me, e eles disseram: “És tu, pá!” E desde aquele dia passaram a chamar-me Xanana. Quanto a Kay Rala, é outra história. No momento da nossa retirada estratégica inicial, eu voltei a Manatuto para defender a população. Um certo dia passámos por uma hortinha de mandiocas e estava lá um velhote. Era um homem magrinho, magrinho, com os cabelos tão brancos como esta toalha, e apresentaram-me a ele. Olhou-me e perguntou-me como me chamava. Respondo-lhe: “José Alexandre Gusmão.” Ele repete, diz que conhece o meu pai, a minha mãe e a minha família toda, e acrescenta: “Foi para este sítio que os teus pais vieram quando foi da invasão japonesa, esconderam-se aqui.” E continua: “Agora és comandante de pelotão. Queres ganhar a guerra, ser bom comandante? Gusmão é nome de família, mas já José Alexandre é nome português. Se estás a lutar pela liberdade desta terra, tens de levar um nome próprio da terra. Agora escolhe. Um avô teu chamava-se Se Kay Rala, outro Se Kay Rola. Escolhe, tens de escolher, se queres ganhar a guerra!” E eu disse: “Kay Rala.” Deu-me a bênção e retorquiu: “Serás Kay Rala.”²

Fizeram-me adeus, meteram-se comigo enquanto eu pedalava. A casa destas pessoas está à beira da estrada, à direita. Oh meu amigos, eu paro já a bicicleta e vou ter convosco. (Para grande surpresa deles, pois não estavam à espera deste súbito encontro frente a frente. Pensavam que era só dizerem adeus e que eu passaria sem mais? Agora vou ter convosco).
E foi uma rapariga que tirou esta foto, mas não foi à primeira. Desta vez vou fazer repetir a foto até ficar bem. Normalmente as pessoas cortam os pés. Apanham muito teto, e acham que da cintura para baixo a gente não interessa. O teto é mais importante… Portanto desta vez eu fui ver a foto e expliquei-lhe que tem de descer um pouco a imagem, cortou os pés! Todos se riram e voltámos à pose. De qualquer forma eu estou toda suja de lama e terra. Braço, camisa, pernas. Já levei uma tareia nestes poucos quilómetros. As belas estradas timorenses, ainda em construção (ou se calhar devo dizer: finalmente em construção) vão deixar-me todos os dias assim.

É meio dia e meia e tenho 30 km feitos na bicicleta, até agora, e mais 36 na pickup. Fizémos até agora 66 km ao todo, desde Díli. Considero um bom ritmo, dadas as três mil paragens pelo caminho.

Claro que foi o Valério quem me ajudou a escolher a comida. Basicamente a pergunta era “carne ou peixe?” E depois “frango ou vaca?”. Também havia porco, mas o Valério não aprecia e eu acabei por evitar, pelo facto da vaca (ou do búfalo) e do frango serem mais saudáveis. Nesta viagem se bem me recordo nunca comi porco, a não ser numa sopa de massa e almôndegas, que vieram com um toucinho delicioso.

Comemos aqui na esplanada, com a bicicleta ali atrás. Nunca perderei a bicicleta de vista, nesta viagem. Ficará comigo dentro dos quartos dos hotéis, durante a noite. Não pelo receio de ser roubada, efetivamente nunca senti esse perigo, mas pelo facto das pessoas e crianças sentirem curiosidade por uma bicicleta destas, que é pouco vista, e quererem experimentar. Estragarem uma qualquer peça ou acessório significaria uma verdadeira dor de cabeça, pois não existem oficinas especializadas em bicicletas nas zonas onde andamos, nem com este tipo de acessórios disponíveis. Em Díli é sob encomenda, a maior das vezes. Ninguém toca na minha bicicleta, portanto 🙂

A foto ficou desfocada, mas este polícia é tão jeitoso que mantive a foto. Veio aqui almoçar, ao restaurante.

Há sempre um cão à espera de uns restinhos de comida.


¹ “Biography – Early Life” (s.d.). Kay Rala Xanana Gusmão. Página consultada a 16 Setembro 2018, <https://www.xananagusmao.org/biographyscroll/#early-life>

² Neves, António Loja (2018, 6 Janeiro), “Xanana Gusmão: “A população esteve logo de início contra os invasores””. Jornal Expresso. Página consultada a 16 Setembro 2018,
<https://expresso.sapo.pt/internacional/2018-01-06-Xanana-Gusmao-A-populacao-esteve-logo-de-inicio-contra-os-invasores#gs.NOT8j0g>

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