060 – Corvo – Pelas Cumeeiras da Caldeira (II)

As turfeiras. São muito fofas.
Para mais detalhes sobre as turfeiras nos Açores, recomendo o website do Centro de Ciência de Angra do Heroísmo.

Pico nº 2 está feito!

Mais tarde dir-me-ão que este é um osso do quadril de uma vaca. Então uma vaquinha morreu aqui, coitadinha… Até ficar em esqueleto!

– O que estás aqui a fazer, Rute?! Estes são os domínios do Gado Bovino.
– Eu sei, vaquinha. Mas deixa-me passar e não me dês nenhuma marrada. Eu não tardo aqui pelos teus domínios.

E ela deixou-me passar.

Ali em baixo é a parte crítica. Começam as hortências, onde o João disse que não dá para passar.

Falésias escarpadas. Tirei esta foto deitada no chão.

Toda esta zona são falésias escarpadas.

Cabras! Os animais andam por todo o lado sem problemas nenhuns.

Aqui, em local tão agreste, há camas de vacas. Elas dormem aqui, no meio das ervas. Estão ali os espaços das ervas calcadas pelos seus corpos. Como é possível que animais de 200 ou 300 kg se metam nestes pontos tão altos, junto às falésias.

É aqui que já não dá para passar. Atrás desta rocha são falésias. É uma rocha muito alta, só descendo com cordas do outro lado. É aqui que o João disse que eu teria que descer. Não tenho alternativa. Vou descer e vou ao Morro dos Homens pelo outro lado – iniciarei a caminhada pelo lado esquerdo do Caldeirão. Vou ver se dá. Eu vim agora pelo lado direito. E se não der, vou por fora do Caldeirão.
Não desisto, Grande Senhor do Reino dos Pássaros. Não me maltrates. Ajuda-me a conhecer-te.

Parece tudo tão simples, nas fotografias. Parece um relvado liso dum campo de futebol. Basta sentar e escorregar por aqui abaixo.
Mas as coisas não são tão simples. A única maneira de perceber o tamanho gigantesco disto, é olhar para as vaquinhas, lá em baixo. Há seis vacas lá em baixo – aumentando a foto, consigo contá-las. Não se vêem vaquinhas nenhumas? Porque elas estão tão longe que estão minúsculas.

Passei a zona mais a pique, junto ao rochedo, com muito cuidado. Fui devagar. A altitude é muito grande. Não tenho rede de telemóvel. Já deve andar uma porção de gente lá em baixo, mas eu nem consigo ver as pessoas, de tão minúsculas que estão. Uma coisa tão simples como torcer um pé pode ter consequências graves. Não tenho maneira de chamar ninguém. Eu nem vejo ninguém, quanto mais gritar e ouvirem-me. Nem as pessoas imaginam que está alguém aqui em cima. Também não me vêem a mim, só com binóculos. Na vila sabem que eu vim para aqui – o João, o Filipe, a Vera, o Pedro – mas alguém irá à noite bater à porta do meu alojamento a perguntar se estou lá? Ninguém. As pessoas nem querem incomodar. Se eu tiver o telemóvel desligado, esta noite, é porque estou a descansar e não quero ser incomodada. Mas não, o telemóvel poderá estar desligado porque estou aqui em cima, sem rede, com um pé torcido, até que alguém venha fazer este percurso à minha procura.

Este percurso efetivamente é fácil. Exige cuidado e atenção, mas o facto de eu o ter feito sozinha sem equipamento nenhum especial, revela que é fazível por alguém com a mínima resistência física. O risco é estar sozinha. Mas é esse o grande desafio. Eu quero estar sozinha e saber enfrentar as adversidades com tranquilidade de espírito. Mantendo a ponderação e a concentração.
Fazer este percurso com um guia não teria nem metade da graça.

Conforme referi na crónica 53, existia aqui um moinho de água, ali vêem-se as suas ruínas. O moinho aproveitava o desnível da água entre as lagoas para trabalhar.

São 10h52. Já desci um bom bocado e começo finalmente a ver pessoas. Esta foto foi tirada com o zoom no máximo – 140 mm. As pessoas ainda estão longe.

Mais camas de vacas. Onde elas vêm dormir. Eu aqui com estes cuidados todos, a enterrar constantemente os pés nos buracos deixados pelas suas patas, e elas vêm para aqui dormir como se nada fosse.
As limitações dos bípedes humanos.
Onde andas, melro? Estás a ver-me?

Eu vou descendo agarrada aos juncos. Não consigo ver os buracos na terra, os pés metem-se lá para dentro, em más posições. Ando com muito cuidado.
Um destes juncos meteu-se-me pelo nariz adentro, quase até aos olhos. Fez-me lembrar a análise à Covid-19, que tive de fazer em Lisboa, antes de vir para aqui. Como aquela análise foi dolorosa. A segunda análise – que fiz na ilha de Santa Maria, já foi normal, como toda a gente a descreve. A enfermeira de Lisboa ia-me matando. Eu queixei-me que estava a doer. A doer? – respondeu ela – Não está a doer, está a fazer impressão! Está a doer-me, sim.
Só sei que fiz a análise de manhã, e à noite ainda doía. A enfermeira esteve quase meia hora a esfregar dentro de cada narina, mais um pouco e fazia sangue de tanto esfregar.
E eis que agora me enterro no meio destes juncos e eles se metem pelo meu nariz adentro. Troças de mim, Grande Senhor do Reino dos Pássaros. Estás a troçar de mim.

Está ali um buraco à direita, das patas das vacas. Elas pesam 200 ou 300 kg, a terra é mole, elas afundam-se. Não percebo porque vêm elas dormir para aqui. Como é que não lhes custa andar aqui.

Bom, já vejo as vaquinhas.
Descanso um pouco.
Cantei-lhes.
Tudo igual.
Gritei muito, com toda a força dos meus pulmões:
UMAS VAQUINHAS MUITO LINDAS QUE ANDAM AQUI A PASSEAAAAAAR!…
Nada.
Nem sequer levantaram a cabeça, como é hábito quando me ouvem cantar.
Ninguém me vê, ninguém me ouve, nem as vaquinhas. Tenho de continuar a descer.

Bastam dez passos e estou ali em baixo. Parece, não parece? Mas não são dez passos. Repare-se novamente no tamanho das vacas lá em baixo. Bom, mas já estou a salvo, agora é só descer, é fácil.

Então, amiguinhas? Nunca viram ninguém descer por aqui?
E cantei-lhes.
Umas vaquinhas muito lindas que andam aqui a passear!…
Efetivamente cantei muito toda a descida. Ninguém me ouve mesmo. Ninguém me vê sequer. Em toda esta magnificência eu sou uma mera formiga insignificante.
Aqui as vacas já me vêem e ouvem. E responderam. Elas mugem, a responder.

Esta então fez um escabeche dos diabos toda a minha descida. Ela mugiu que se fartou. Eu a cantar e ela a mugir. Mas não era de amizade ou de alegria. Ela não estava contente por eu vir lá de cima, e estava a alertar todas as outras. Protestou imenso. Quando eu finalmente entrei no caminho de todas as outras pessoas que habitualmente por aqui passam, ela virou-me as costas e foi pastar. Lá se acalmou. Que bizarro, vaquinha. Pensas o quê? Que eu sou uma extraterrestre vinda do espaço? Ou estarei a violar a privacidade dos vosso quartos?

Veja-se o tamanho das vacas e o tamanho das hortências. Dá para uma manada inteira de vacas desaparecer no meio das hortências. Imaginem eu. Para mim aquilo é uma floresta amazónica; passar ali só à catanada.
E a pedrinha parece tão pequenina. Oh, Rute, não conseguiste saltar aquela pedrinha?!…

Visto daqui já parece maiorzito. Bem me parecia que estava a ver tudo muito a pique, quando desci ali ao pé da rocha. Afinal não era ilusão de ótica.

De volta à civilização. E vem um cão passear no Caldeirão! Também tem direito, sim. Deve conversar facilmente com o Grande Senhor, do Reino dos Pássaros. Entendem-se melhor.

A bicicleta estava ali presa, e ali continuará. Eu vou experimentar subir por aqui. O João disse-me que não dá por causa das turfeiras, que os pés se enterram. Vou ver. Abasteço-me de água e parto. São 12h16.

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