038 – Flores – Cedros
Esta deve ser a casa assombrada cá de Cedros.
São 9h22 e este cão faz um escarcéu dos diabos. Ninguém mais vai dormir nesta aldeia. Hoje é domingo, recordo. Até acordou o grande lá de trás, que está a espreguiçar-se. E o qual também vai ladrar desalmadamente.
Primeiro habitante de Cedros que vejo. Chama-se João Corvelo, diz-me, quando eu lhe perguntei o nome.
O João anda a despachar-se, vai meter-se na carrinha e cuidar dumas vacas que tem longe daqui, na Fajãzinha.
Infelizmente não dei conta de que apanhei o João de olhos fechados, na foto, mas é a única que tenho e mantive-a.
Ora com este escarcéu de cães, e mais as inesperadas conversas na rua, aparece a segunda habitante de Cedros: a Cláudia, mulher do João.
A fera chama-se Milú. – Milú, sou a Rute, não me conheces, na tua sapiência e omnisciência canina?
– Olá Rute! Pois não estava a conhecer-te. Tenho uma família para proteger, nesta aldeia tão movimentada e cheia de criminosos estranhos.
A Cláudia é lisboeta e formada em Engenharia Florestal. Casou-se com o João, tiveram uma filha, e vieram morar há cinco anos aqui para a terra do João, que é florentino.
O João é Deputado na Assembleia Regional dos Açores, pelo Partido Comunista, disse-me entretanto. Fez Medicina Veterinária em Lisboa. Foi para Lisboa com 28 anos. Trabalhava na Segurança Aeroportuária, mas como sindicalista e comunista acabou por não ser desejado, contou. Deram-lhe cinco mil euros como indemnização e mandaram-no embora. E o João pegou nos cinco mil euros e foi estudar para Lisboa. Fez amigos, conheceu a mulher, teve um colega cabo-verdiano também com conhecimento das ilhas e o sentimento de saudade das ilhas.
Aqui nas Flores foi concorrendo para Médico Veterinário na Administração Pública e conseguiu ao fim de algum tempo. Tardou, mas foi, contou. E decidiu ir buscar uma caixa de relíquias, para mostrar-me.
É uma mesa típica florentina de há duzentos anos, com bancos em meia lua. Foi o seu avô que fez todas estas miniaturas. Ao centro é uma baleia.
O tamanco típico ficou desfocado, mas eu mantive a foto. Eu estou a fotografar e não estou a olhar para as fotos. Estou a conversar com o João. Só mais tarde é que irei dar conta.
Um “grossão”: é a carroça sem rodas porque o piso era mau.
“Para João Paulo Valadão Corvelo oferta do teu avô João Valadão Corvelo. Recordar é viver. Teu avô”.
Falámos duma porção de coisas, e depois entretanto o João foi-se embora na carrinha e eu continuei a falar com a Cláudia. Com o João, nem sei como foi a conversa parar aqui, falámos ainda que furões e ratos caçam coelhos. Sempre têm predadores, afinal. A febre hemorrágica dos coelhos tem cinco anos e suspeita-se que veio do continente, nas botas dos caçadores. Já existe no continente há mais tempo. Mas está a passar, vão abrir a caça este ano.
E o João referiu que a incidência de cancro aqui na ilha das Flores é das maiores em Portugal, eventualmente por causa da radioatividade da Base Francesa, que aqui permaneceu entre 1960 e 90. Não fazia ideia disto.
E entra em cena a terceira habitante de Cedros, que foi acordada com esta barulheira toda à sua porta: a Maria Antónia. Tem cinco anos e meio. Veio ainda no colo dos pais, com poucos meses de idade, morar para a ilha das Flores. A Milú está a ser mordida na cauda pela outra fera, mas não deixa a Maria Antónia. Também acho que não consegue mesmo. Não sei quem não deixa quem. Bom, e eu prossigo caminho. Ainda estive quarenta minutos na conversa, em Cedros. Quando virem o “tempo parado” no meu GPS, ao final do dia, é a estas coisas que se deve, também. Quais pressas e velocidades. E o Maps.me agora diz-me para sair da estrada e enveredar por aqui. Por aqui? Isto é um caminho? Traços cinzentos em linha reta. Significa: “Não há caminho, desenrasca-te”. Mas está ali um trilho desenhado, com traços pretos. Porque não me mandas por aí, rapaz? Em linha reta são 330 metros e o Maps.me diz-me que estarei lá em cinco minutos. Bute, Rute!