029 – Ponta Delgada, 9º dia – Escala na Ilha de São Miguel

Despertar às quatro. Às 5h30 a Annet leva-me ao aeroporto – são 15 km por 15€. Tenho voo às 7h15 para Ponta Delgada, depois espero seis horas por outro voo para a ilha das Flores. Chego às Flores às 15h40. Terei uma carrinha à minha espera.
Hoje é um dia perdido, passado em aviões e aeroportos. Enfim, vou estar sentada o tempo todo, a descansar.
Os resultados da minha segunda análise à Covid-19 é suposto chegarem hoje. Quero chegar às Flores. Se der positivo em São Miguel é chato, terei de fazer a quarentena aqui. Prefiro o sossego das Flores. Ainda não conheço a ilha das Flores, mas há de ser mais sossegada do que São Miguel.

A Annet indica que na povoação do Norte vive um casal austríaco, dois casais ingleses e alguns portugueses. Eu vinha a contar-lhe pelo caminho que não vi ninguém, ontem.

Uma rapariga fala com uma mulher e tira a máscara para ficar na conversa aqui junto à porta de embarque, durante quase meia hora.
Outra rapariga tira a máscara para escrever no telemóvel.
Outra senhora vem com calor a esticar e a afastar a máscara da cara.
A criança tirou a máscara para brincar com o telemóvel.
As janelas todas fechadas.
As pessoas não percebem que este vírus é mortal, que põem em risco a família e os amigos. O que interessa é estar na conversa sem a máscara a chatear. Eu estou a usar uma máscara FFP2, consideravelmente mais cara, esperando que me proteja a mim e aos outros. E vou pondo gel nas mãos. Estamos todos tramados com esta pandemia.

Eu tenho o lugar 5A, e pensava que estava à frente, mas não. O avião tem 7 filas! Estou atrás! 🙂

A chegar à ilha de São Miguel.

As pessoas  da ilha de Santa Maria têm que ir ao médico em São Miguel. As despesas são pagas pelo centro de saúde, se for este a prescrever a ida. Mais um eventual acompanhante, e mais uma eventual estadia se não conseguirem regressar no próprio dia. Havia muitos carros estacionados no aeroporto de Santa Maria, às 6 da manhã, supostamente de pessoas que tiveram de ausentar-se da ilha, por qualquer motivo.

Cheguei às 8 da manhã ao aeroporto de Ponta Delgada. O meu voo para as Flores é às 13h40.
Eu ainda fui para a sala de espera, seguindo a porta dos “voos de ligação”. Mas cheguei à sala de espera e fui imediatamente acometida de uma grande impaciência. Vou ficar aqui fechada no aeroporto durante quase seis horas? Ah não vou, não. Tirem-me daqui. Quero sair. À mercê de vírus num aeroporto durante seis horas…
Então disseram-me que eu tinha de ir pedir aos funcionários que estão no raio-x para me abrirem a porta. Lá fui e soltaram-me. Libertaram-me. Vou andar um bocado ao ar livre.
Muito a contragosto devido ao preço caríssimo – 4,17€ –  decidi deixar aqui a minha bagagem de mão, que ainda é relativamente pesada. Eu só vou estar fora duas horas, mas tenho que pagar um dia inteiro. Fui-me embora, contrariada. Mas depois voltei. Vou lá andar carregada durante duas horas. Come e cala.

Vou ao Forte de São Brás a pé. São 45 minutos a caminhar, diz o Maps.me. Recordo que eu já estive em São Miguel em 2018, a passar um fim de semana de férias. E fiquei nessa altura alojada em Ponta Delgada. Mas pronto, já lá vão dois anos, vou recordar a cidade agora.

Igreja de São José, construída no século XVIII.

Vim a caminhar com a sandes que trouxe da ilha de Santa Maria, com o seu pãozinho bom, e queijo fatiado. E vou comê-la já, sem grande fome, só para não andar mais com ela. Os pombos vão ajudar-me a comê-la.

Ali ao fundo está a Igreja do Santo Cristo, ou de Nossa Senhora da Esperança.

Esta igreja – Igreja do Santo Cristo, ou de Nossa Senhora da Esperança – encontra-se integrada no conjunto conventual da Esperança. O Convento e a Igreja datam do século XVI, tendo sofrido alterações posteriores nos séculos XVII e XVIII, albergando a famosa Imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, apresentando um fabuloso conjunto de adereços em ouro e pedras preciosas do século XVIII, e associada à maior festividade da cidade.
Diz-se que as primeiras freiras que habitaram o Convento trouxeram esta imagem, que terá sido ofertada pelo Papa Paulo III às freiras que foram a Roma solicitar a bula de instituição do Convento de Vale de Cabaços, cerca de 1530.
A Igreja apresenta um rico interior, profusamente decorado de talha dourada, pinturas de Manuel Pinheiro Moreira e azulejaria do século XVIII e outra mais recente.
O Convento da Esperança é também conhecido por ter sido no muro exterior da sua cerca, num banco de jardim assinalado por uma âncora, que em 1891 se suicidou o poeta Antero de Quental.¹

Forte de São Brás, construído no século XVI para defesa contra os ataques de piratas e corsários, dos quais já falei na crónica 22, também a propósito do forte com o mesmo nome, na ilha de Santa Maria. Tentei descobrir a origem deste nome – São Brás – e fui parar a um santo que cura males da garganta. Depois fui parar a um militar português: Brás Soares de Sousa (c. 1555 – 1634), que exerceu o cargo de capitão do donatário na ilha de Santa Maria, e parece que vem daqui, mas não tenho a certeza. Não percebo como é que um militar se torna num santo. Quem souber esta história, que avise e eu corrigirei estas crónicas de acordo.

As Portas da Cidade, erguidas no século XVIII para defesa terrestre da cidade. Toda a pedra desta e das restantes construções em Ponta Delgada é basalto, a rocha vulcânica.

Há muitos carros no centro de Ponta Delgada, inclusive aqui, nesta que deveria ser uma rua pedonal. Um teve que parar para carregar qualquer coisa, formou-se uma fila enorme. Os peões que se encolham junto à parede. Já não estou habituada a isto. Lisboa sem carros yeah! (E eu moro no centro de Lisboa – e tenho carro – portanto sei do que falo e afeta-me diretamente. Mas mesmo assim gosto).

Apetece-me comer ananás e perguntei se mo cortavam para eu comer já. Sim, e ainda me dão guardanapos e talheres. Este era o mais pequenino, dentro dos maduros. Tem 1,245 kg e ficou-me em 3,72€.

Há alguma coisa para mim? – perguntou-me o pombo.
Só tenho ananás, vê lá se gostas.
Não gostou.
Depois vieram os pardais e colocaram-me a mesma questão. Atirei um bocado do ananás a um, e o bocado espirrou pingos para cima dele, ao cair no chão. Sacudiu-se. Tem lá calma, Rute!, disse-me ele. A partir daí lancei bocadinhos mais pequenos. Mas não quiseram mesmo.

Esta foto ficou estranha. Eu quis apanhar as flores e a igreja. Cortei a igreja. Não foi boa ideia, Rute.
É a Igreja Matriz de São Sebastião. Foi construída no séc. XV, no local onde já existia uma ermida de evocação a São Sebastião. É um dos monumentos ex-líbris da cidade. Nele sobressaem os vários pórticos manuelinos e barrocos. Trata-se de um templo com intervenções e estilos de diferentes épocas, sendo os mais marcantes o manuelino e o barroco, patentes nas portas, nos altares e nos tetos no seu interior.
Ao longo dos tempos, esta igreja sofreu profundas remodelações: a primeira no século XVIII, no frontispício; a segunda no século XIX, na zona envolvente e a terceira no século XX, conferindo-lhe a sua fisionomia atual.
A Igreja de São Sebastião é guardiã de um notável tesouro, nomeadamente peças de arte sacra, com especial referência para a estatuária, ourivesaria e paramentos, fazendo parte deste último conjunto, duas dalmáticas e duas casulas, datáveis do século XIV, e segundo outros do século XV. No século XIX, António Joaquim Nunes da Silva, um rico comerciante local, ofereceu à cidade um relógio para ser colocado no cimo da torre, sendo hoje um ex-libris, para além de ter sido durante mais de 100 anos o regulador horário das gentes de Ponta Delgada.²

As pessoas olham muito para mim, com a máquina fotográfica a tiracolo. Sou das primeiras turistas depois do confinamento devido à Covid-19.
Há muita pobreza e mendicidade aqui nesta zona.

Roberto Ivens, natural de Ponta Delgada, foi, juntamente com Hermenegildo Capelo, um explorador do interior de África, no século XIX.

Leio o seguinte sobre si:
Roberto Ivens era um homem expansivo e exuberante. A sua personalidade, caracterizada pela vivacidade, generosidade e coragem, revelava um espírito atento e uma inteligência arguta. O seu caráter impressionável denunciava uma atitude elegante e desembaraçada. À sua roda espalhava alegria, mesmo no meio de circunstâncias difíceis. A sua vivacidade revelou-se desde o início da sua vida escolar. Os colegas de escola apelidaram Roberto Ivens de Roberto do Diabo17. Este foi sempre um aluno aplicado e de compreensão fácil. Revelou desde cedo uma individualidade muito ousada e intrépida. De grande loquacidade, as frases acudiam-lhe com uma destreza e correção fora do vulgar.

Sobre a história da sua família:
Roberto Ivens era filho de pai inglês: Robert Breakspeare Ivens, e de mãe portuguesa: a micaelense Margarida Júlia de Medeiros Castelo Branco. Nasceu em Ponta Delgada em 12 de Junho de 1850.
William Ivens, avô paterno de Roberto Ivens, natural do condado de Oxfordshire (Inglaterra), tinha estabelecido escritório em Ponta Delgada no ano de 1800. Dedicava-se à exportação de laranja para vários países europeus, incluindo a Rússia, e principalmente para Inglaterra. Foi vice-cônsul do seu país e cônsul da Rússia. O seu filho, oriundo portanto de uma família de ascendência inglesa, rica e abastada, irá relacionar-se com uma rapariga micaelense oriunda de uma brasonada família da baixa nobreza, mas entretanto caída na pobreza. Desta relação nascerá um primeiro filho, Roberto Ivens. Tinha a sua mãe 18 anos de idade. Robert Breakspeare Ivens, pai de Roberto Ivens, nunca abandonou a mãe do seu filho, de quem virá a ter um outro descendente, Duarte, mas também nunca assumiu perante a sociedade de então a sua união amorosa. Por essa razão Roberto Ivens será registado como filho de pais incógnitos. O seu batismo foi feito em secretismo com o objetivo de encobrir as circunstâncias do seu nascimento, evitando assim a crítica da sociedade. O pai de Roberto Ivens levará mais dois anos a vencer o receio da crítica em virtude de preconceitos sociais. Aconselhado por um primo e compadre seu, Paulo de Medeiros, e quando prestes a nascer o seu segundo filho (a 31 de Agosto de 1852), apressou-se a reconhecer a paternidade encoberta em 1850, contudo, o nome de Margarida Júlia de Medeiros Castelo Branco, mãe de Roberto Ivens, continuará a ser oficialmente ocultado. A 30 de Julho de 1852, ficou registado que Roberto Ivens era filho de Robert Breakspeare Ivens, solteiro, negociante e de mãe e avós maternos “não declarados”. Que embora tenha sido batizado como filho de pais incógnitos, era agora reconhecido pelo pai.

Roberto Ivens cresce na companhia de D. Margarida e da tia até à idade de três anos, altura em que perde a mãe, a qual morre de tuberculose em 1853, com 21 anos de idade. Em 1858, com oito anos, e juntamente com o seu irmão, Roberto Ivens vai viver com o pai. Este último, casado de novo com Luiza Borralho após a morte da mãe de Roberto Ivens, tinha passado a residir em Faro, onde se dedicava à exportação para Londres de cortiça, figos e produtos regionais.

O pai de Roberto Ivens faz uma petição ao rei D. Pedro V para que o filho fosse admitido na Marinha, em 1861. A resposta informa que Roberto Ivens pode ser admitido a Aspirante de 3ª classe sem favor pois tinha já onze anos e um mês. A partir do último trimestre desse ano, Roberto Ivens inicia o plano de estudos secundários e específicos na Companhia de Guarda-Marinha. Concluirá os estudos da Escola Politécnica em 1869, e com 17 anos de idade assenta praça como Aspirante Extraordinário na Armada. Conclui o curso em 1871, ainda com vinte anos de idade, conseguindo as mais elevadas classificações.

De 1877 a 1880, juntamente com Hermenegildo Carlos de Brito Capelo e, em parte, com Serpa Pinto, ocupar-se-á da exploração científica ao interior de África. No regresso é condecorado com a Ordem Militar de São Tiago pelo mérito científico, militar e artístico. Juntamente com Hermenegildo Capelo descreve a viagem desta expedição em dois volumes intitulados “De Benguela às Terras de Laca”.

Posteriormente o parlamento português aprova uma nova viagem de exploração que completa a primeira na ligação entre os Oceanos Atlântico e Índico. Para esta expedição, de Angola à contra-costa, são nomeados mais uma vez Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens. A viagem ocorre entre 1884 e 1885.

Roberto Ivens e Hermenegildo Capelo foram assim companheiros inseparáveis destas duas expedições científicas a África. Estes exploradores relataram os dias de expedição nos diários que os acompanharam. Mas para além do registo precioso das anotações científicas e das impressões de viagem, Roberto Ivens preencheu os seus cadernos com desenhos feitos por si próprio. São desenhos carregados de uma forte expressividade e balançam entre o registo forte e o traço subtil. As viagens de exploração não eram lineares. Os exploradores deslocavam-se em voltas labirínticas através das selvas, pântanos e savanas, efetuando grandes caminhadas por espaços abertos e sem ajuda de um mapa.³

As doenças contraídas em África atormentariam Roberto Ivens até ao fim da sua vida breve. Roberto Ivens manteve-se sempre ativo em vida, até que uma dupla pneumonia, à qual não conseguiu resistir, tirou-lhe a vida em menos de uma semana. Tinha então perto de quarenta e oito anos de idade. Morreu a 28 de Janeiro de 1898. Deixou esposa e três filhos.³


¹ “Igreja do Senhor Santo Cristo” (s.d.) Guia da Cidade. Página consultada a 21 outubro 2020,
<https://www.guiadacidade.pt/pt/poi-igreja-do-senhor-santo-cristo-18522>

² “Igreja Paroquial de São Sebastião” (s.d.). Visit Ponta Delgada. Página consultada a 21 outubro 2020,
<http://www.visitpontadelgada.pt/pages/773/?geo_article_id=2804>

³ Taquelim, Mara (2009) “Desenhando em viagem – os cadernos de África de Roberto Ivens”. Tese de mestrado, Desenho, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes. Pp 2, 24-27. Consultado a 21 outubro 2020,
<https://repositorio.ul.pt/handle/10451/3148>

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