023 – Santa Maria, 7º dia – Santo Espírito
Hoje é 3ª feira, dia 7 de julho. Deixei o despertador para as seis, mas acordei às 5h20. Não ouvi chover esta noite.
Ainda é noite cerrada. Só amanhece às 6h30.
Ontem ao final da tarde ainda aqueci um copo de leite, e não estou habituada a este fogão, foi-se tudo pelo lume. Começou a ferver num ápice; agora tenho de estar aqui de plantão, não posso abandonar o posto. E tenho ali uma grande torradeira, dá para fazer torradas grandes, como eu gosto.
Pus a mesa, logo se vê o que me apetece, mas fiquei-me por uma tigela de Cerelac, já não consegui comer mais nada. Ainda tenho ali três queijadas da Rossana, de São Miguel. Ou mais exatamente do Eduardo, o seu marido.
São 6h46 e eu devia estar a arrancar agora. Mas começou a chover bastante. Vou aguardar.
Levei 25 minutos a decidir o percurso. Vou ficar aqui perto de Santo Espírito: vou à Cascata do Aveiro.
320 metros de subida acumulada ainda é puxadito.
Começo a ficar impaciente. Aguardo que pare de chover. Joguei aos dardos. Faz-me confusão atirar agulhas com os pneus da minha bicicleta ali tão perto, mas correu tudo bem.
Saída às 8h10. Parou de chover. Tenho vestido o meu equipamento impermeável, próprio para ciclismo, de calções e casaco impermeáveis. (O que é uma treta, só protege de chuviscos – são dos equipamentos mais caros e de marca, mas são uma treta. Não há nada como um impermeável de plástico, e eu tenho um, mas já não me cabia mais nada na bagagem; além de que tenho calor a andar com ele).
Eu esperei algum tempo que ele levantasse a cabeça, para tirar a fotografia, mas ele tem uma dúzia de raspadinhas e nunca mais sai dali, a raspar todas.
Igreja de Nossa Senhora da Purificação, também conhecida como Igreja de Nossa Senhora das Candeias (decididamente, os marienses têm sempre que dar dois nomes às igrejas. Portanto, como têm 40.327 igrejas e ermidas na ilha, a malta memoriza 80.654 nomes) (Estou a brincar, não faço ideia quantas igrejas e ermidas existem).
Construída no século XVI, ampliada no século XVIII, e feita a reparação do adro em 1966. Muito bem.
Esta igreja encontra-se referida por Gaspar Frutuoso:
“Saindo nesta Fajã para o Norte, nas terras feitas ao Campo da Macela, por a haver nele, chama-se ali Santo Espírito, onde dizem os antigos que na Ilha se disse a primeira missa do Espírito Santo, quando entraram nela e dali ficou a nomear-se ainda hoje em dia esta freguesia de Santo Espírito, sendo ela depois edificada, como agora está, da invocação da Purificação de Nossa Senhora, sem perder aquele nome antigo (…)”¹
A pedra negra é basalto, de origem vulcânica, como grande parte das construções nas várias ilhas dos Açores.
E mesmo ao lado da igreja está o cemitério. Bute lá conhecer o cemitério.
Cá estão as caixinhas redondas de alumínio. Deve ser alumínio.
Gostei deste verso. É um extrato de um poema de Antero de Quental:
Com os Mortos
Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos…
E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos…
Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,
Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.
Antero de Quental, in “Sonetos”
Este será o túmulo mais antigo, talvez. O coveiro não andava por aqui, com grande pena minha, para mostrar-me e explicar-me as coisas. Se calhar está enterrada aqui alguma figure ilustre, e eu fiquei sem saber.
Vêm da Maia, disseram-me, e deixaram carro na Calheta.
O meu caminho de hoje é por aqui.
Está a chuviscar. A máquina fotográfica vai dentro dum saco plástico, dentro da mochila. Dá-me trabalho. Cada foto que preciso de tirar, levo algum tempo: parar a bicicleta, tirar a mochila das costas, tirar a máquina do saco plástico, e depois repetir tudo para guardá-la. A máquina tem de andar ao ombro, sem malas nem nada, é só agarrar e disparar.
Chama-se João Batista. Perguntou-me onde estou alojada, e constato que ninguém conhece o casal alemão da casa onde eu estou. Já ontem no táxi ninguém sabia, nem mesmo o senhor da máquina de roupa que vinha para Santo Espírito.
Eu tenho uma ideia que Santa Maria é uma ilha pequena e que toda a gente se conhece, mas pelos vistos não. A Annet mora aqui há 8 anos, e o marido há muito mais, disse-me. Têm um filho adolescente na escola, que se cruzou comigo quando eu estava a chegar com as bagagens. Que bizarro, não se conhecerem todos. Ninguém consegue perceber onde eu estou. A Annet disse-me o nome do marido, o qual as pessoas conhecem mais, mas é um nome alemão e eu esqueci-me dele.
Há uma comunidade alemã a viver na ilha de Santa Maria, e também de outras nacionalidades, como ingleses, austríacos. Mas pelo que vim a saber mais tarde – comentaram comigo – são comunidades fechadas, não se misturam. E o facto da Annet não saber que no restaurante ao lado da sua casa servem almoços, é significativo. Não será alheio a isto a dificuldade na língua. Não existem escolas de português para estrangeiros, contou-me a Annet, que falava comigo em português com algum custo. Eu não quis falar em inglês, mesmo para a própria Annet praticar comigo. Mas chega a um ponto em que não há alternativa senão dizer uma palavra ou outra em inglês, senão o diálogo não avança por desconhecimento das palavras em português.
¹ “Igreja de Nossa Senhora da Purificação (Santo Espírito)” (s.d.) Wikipedia. Página consultada a 13 outubro 2020,
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Igreja_de_Nossa_Senhora_da_Purifica%C3%A7%C3%A3o_(Santo_Esp%C3%ADrito)>