004 – São Miguel – Lagoa das Sete Cidades & Almoço

Enganei-me e fiz 6 km para trás, em forte descida. Quando dei conta, tive de fazer os mesmos 6 km para cima, em forte subida. O taxista Rui tinha-me dito que depois da Lagoa do Canário eu teria que descer por onde viemos, para apanhar o trilho para o Miradouro da Vista do Rei, o meu segundo destino de hoje. Eu cheguei ao início do trilho, com vários quilómetros, e li na placa que bicicletas não são permitidas. Tive receio. Podem ser caminhos muito íngremes, maus para a bicicleta, e depois nunca mais me safo. Segui caminho pela estrada, a descer. Ora só depois percebi que a Lagoa das Sete Cidades é em sentido oposto. O Maps.me estava a apresentar um comportamento estranho, efetivamente. A maneira que ele tem de dizer que vou no sentido errado é apontar a seta para baixo e para cima, alternadamente. Enfim, parece que está embriagado, diria. O que se passa? Orienta-te lá, rapaz. Eu já cá estive em 2018, conforme contei, mas foi de mota e nem era eu que conduzia. Lembrava-me lá para que lado era. Até que encontrei um agricultor no trator, a trabalhar nas suas terras, e perguntei-lhe. Xii, isso é lá para cima, respondeu-me ele. Estou feita. O meu objetivo hoje é fazer as cumeeiras e também o interior da lagoa. Este atraso pode comprometer-me os planos. (Já sei, já sei: é tudo muito rápido. Mas eu não vim aos Açores para fazer corridas de bicicleta. Eu passo mais tempo a observar e a fotografar do que a andar de bicicleta).

Um coelho atropelado. Coitadinho. Vou tirá-lo da estrada.

Agarrei-lhe numa patinha e pu-lo na berma da estrada. Estava a precisar dum banho, este coelhito. Cheirava muito mal, coitadito. E não era de estar morto, ele foi morto há pouco tempo, o corpo ainda estava quente.

O aqueduto, que ainda funciona – disse-me o taxista Rui hoje de manhã, enquanto subíamos no táxi. (Eu vou a subir novamente, agora na bicicleta. Parece que foi castigo, eu que nunca quero fazer subidas, tenho já uma bela estreia no primeiro dia…)

Deixo a nota de que há duas vantagens em estar tudo deserto, sem turistas: em primeiro lugar, para tirar fotos não é preciso esperar que as pessoas saiam. Foi o caso do miradouro na crónica anterior.
Em segundo lugar, faço xixi facilmente em qualquer lugar. Não há ninguém mesmo.

A Lagoa das Sete Cidades, eleita como uma das 7 Maravilhas de Portugal, é composta por uma lagoa verde, e outra azul. Está no topo da caldeira do Vulcão das Sete Cidades.

Deixo a transcrição duma placa dum Centro de Interpretação que irei visitar daqui a uns dias, noutra ilha:
A ilha de São Miguel é a maior ilha do arquipélago dos Açores, com uma superfície de 747 km², e o seu vulcanismo é caracterizado, em termos gerais, por quatro grandes edifícios vulcânicos poligenéticos, siliciosos e com caldeira (Povoação, Furnas, Sete Cidades e Fogo) e por duas áreas de vulcanismo exclusivamente basáltico, embora de idades diferentes: os complexos vulcânicos do Nordeste, o mais antigo da ilha, e o dos Picos, o mais recente e que ocupa sensivelmente a área entre Ponta Delgada-Lagoa e Capelas-Ribeira Grande.
Desde o início do povoamento ocorreram várias erupções na ilha, entre as quais destacam-se: a de 1563 (Vulcão do Fogo), a de 1630 (Vulcão das Furnas) e a de 1652 no Pico do Fogo (Complexo Vulcânico dos Picos). Para além destas ocorreram também erupções submarinas ao largo da ilha, sendo a mais conhecida a da ilha Sabrina, que se localizou ao largo da Ponta da Ferraria, em 1811.¹

Turistas! Nunca imaginei tirar uma foto propositadamente a turistas. São bichos raros, nestes dias! Até merecem uma foto! Os primeiros turistas que vejo! 11 da manhã.

E aproveitei pedi-lhes para me tirarem uma foto a mim. Agora esta operação é um pouco delicada, com a Covid-19. Será que desinfetamos ambos as mãos (eu e a pessoa que me tirou a foto) por ter mexido na máquina fotográfica? Efetivamente eu ando com um frasquinho pequenino de gel desinfetante, na bolsa da cintura. Mas não desinfetei as mãos agora, nem desinfetei a máquina fotográfica. Xiça, haja paciência. Se eles estão aqui é porque a análise à Covid lhes deu negativa também.

Comecei agora a fazer as cumeeiras, ou seja, dar a volta à Lagoa das Sete Cidades pelo bordo da caldeira.

Ainda estou envergonhada, constatei. Ainda mal falo às pessoas. Não perguntei o nome a este cavaleiro. Só lhe perguntei se é daqui, de São Miguel. Respondeu-me que sim, e apontou-me a direção da sua casa, para o seu lado direito. Eu perguntei-lhe se o cão vai morder-me, e ele respondeu-me que não, que ainda é novinho, tem seis meses, e já é forte o suficiente para fazê-lo, mas que não ataca.
Já o agricultor que me disse o caminho cá para cima, quando eu ia perdida, não arranjei coragem para fotografá-lo. Estávamos cara a a cara, ele com uma pronúncia micaelense fortíssima, que eu custei a perceber, e não houve maneira de apontar-lhe a máquina e fotografá-lo. Estou há menos de 24h nos Açores, ainda estou a ambientar-me.
Mas isto vai mudar.

Decidi descer para a povoação das Sete Cidades. Aproxima-se a hora de almoço e eu começo a ficar impaciente. Se eu fizesse as cumeeiras todas, iria passar novamente na Lagoa do Canário e teria que repetir essa parte do caminho. Bom, seria a terceira vez a passar na Lagoa do Canário, com a bicicleta, hoje. Vou já em busca do almocinho, mas é. Tenho comigo duas barras de proteína, de chocolate e caramelo, e um gel energético, mas não me apetece.

Ia eu lançada a descer, já a entrar na freguesia das Sete Cidades, quando um casal me faz adeus, no campo. Opá. Travei imediatamente e voltei para trás para ir ter com eles. Não precisam de fazer-me adeus duas vezes, eu estou sempre pronta para conversar um bocadinho. Ainda estou a ambientar-me aos Açores, acabada de chegar, sabe-me bem serem os açorianos a chamarem-me, curiosos. Fui logo.

São a Madalena e o José Mel. Se calhar é melhor eu pôr a máscara?, perguntei-lhes. Ainda não me habituei a estas coisas de vírus. Mas eles não quiseram de todo. Afinal de contas estamos num espaço aberto.
Que belas batatas! – exclamei. Isto é para consumo próprio ou para vender? O José respondeu que é para consumo próprio, mas rapidamente chegámos à conclusão – e rimo-nos – que são batatas a mais para duas pessoas e mesmo para alguma família chegada. Teriam de comer batatas a toda a hora e em todas as refeições. Já apanharam 14 sacas de 20 kg cada, e agora neste terreno serão outras 14.

Perguntei-lhes onde há um restaurante para eu almoçar. Aproxima-se o meio dia e eu estou cheia de fome. Afinal de contas acordei às 6 da manhã. Indicaram-me dois, basta seguir pela estrada principal e irei lá dar. É já ali à frente.
Despedi-me deste simpático casal e prossegui viagem.

Igreja de São Nicolau, construída no século XIX.

É mesmo ali fora, na esplanada, que vou almoçar. É meio dia, tenho 23 km na bicicleta.

Bife, 12€. Comi metade do que está no prato. É o primeiro dia, eu venho habituada de Lisboa a comer pouco, ainda não sinto grandes fomes. Os 23 km de bicicleta não são nada, o organismo ainda não me pede muita comida. Vou notar isto nos primeiros dias da viagem, que como muito pouco. Apenas a partir de metade da viagem é que começarei a não deixar nada no prato.
Aproveito esta pausa para carregar o telemóvel com o power bank, ou seja, o carregador portátil.
E estranho comer salada. Já não estou habituada a comer saladas, em viagem. Conforme referi anteriormente, nos últimos 3 anos viajei pela Ásia e por África, onde não posso beber água da torneira, e portanto não posso comer saladas lavadas com água da torneira, ou bebidas que contenham cubos de gelo feito com água da torneira. Sentar-me num restaurante durante as férias e comer a salada já é estranho para mim. Mas aqui sim, aqui posso beber água da torneira e comer saladas. Os meus três cantis da bicicleta foram cheios esta manhã com água da torneira.

Há alguma coisa para mim? – perguntou-me ele.
Sim, há, respondi-lhe. E atirei-lhe uns baguinhos de arroz. Efetivamente apanhou uma barrigada de arroz cozido, a ponto de assustar-se debaixo duma chuvada de bagos de arroz. Tive que atirá-los para os lados e fazê-lo andar aos zigue-zagues a apanhá-los, porque se atirasse na direção dele, ele assustava-se e voava. Não está habituado a esta abundância, está visto. Os de Lisboa levam com um saco de arroz em cima e sacodem-se simplesmente.

Um carro passou, lentamente, desviando-se dele. E agora? Vou deixá-lo aqui no meio da estrada? A quem pertence este gatinho? Ele segue-me com o olhar. Andei à volta dele, e ele a seguir-me com o olhar. Mas não se mexe. Não anda. Não sai daqui. Estará ferido? Estará com medo? Há sinais de diarreia no chão.
E agora? Prossigo caminho? Não posso deixar o gato aqui no meio da estrada. Já passou um carro que teve de desviar-se. Ainda por cima vejo um cão grande ali à frente a correr à volta duma propriedade, a uns cem metros. Se ele vê este tufo de pêlo no meio da estrada, adeus. Pesar-me-á para sempre na consciência. Levo-o comigo? Para onde? Na mochila? Para o veterinário?

O que leva na mochila?
Um tripé e um gato.
E o gato anda a passear consigo?
Pois.

Não pode ser.
Não se vê vivalma. Voltei para trás para procurar a senhora e o rapaz que vi no quintal de uma casa. Os açorianos terão que salvar este gato açoriano.
Porém já não estava ninguém. Boa tarde!, gritei. Olá! Mas nada.

Mas lá ao longe estava este rapaz a voltar. Vinha na minha direção. Esperei por si. Só viu o gato depois de eu levá-lo até ele, depois de fazermos a curva (a curva que se vê na foto anterior!).

Pertence à ninhada duma gata da sua tia, disse-me este rapaz, que acabei por não ficar com o seu nome. Ora que maravilha. Então pode levar o gatinho de volta a casa. Uf. Sempre prossigo viagem mais tranquila.


¹ “Ilha de São Miguel” (s.d.) Placa exposta no Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos, Faial, julho 2020.

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