09 – Francesinhas, Livraria Lello, Universidade do Porto
E paparoca? Ah pois é. Comi uma francesinha especial, com ovo e batatas fritas, que até vi estrelas. Sim, porque a andar isto tudo, tive de comer bem. Bem preparada, muito boa mesmo. Numa esplanada em frente às Igrejas do Carmo e dos Carmelitas.
E claro, as tripas à moda do Porto. Eram duas e meia da tarde quando finalmente cheguei a um restaurante castiço nas ruelas da Sé. Comi uma travessa inteira completamente esgalgada com fome. Até me esqueci de tirar uma foto ao prato, só por aqui se vê a gravidade da situação. Já era a única cliente no restaurante, quer o dono quer o rapaz que lá serviam fizeram questão de verificar sempre se eu estava a gostar, se precisava de alguma coisa e “volte sempre”, despediram-se. Ai volto, volto, comi que me fartei. (O rapaz, dos seus 20 anos, teve de apresentar-se… é o Bruno… Com beijinhos e tudo. “É muito bonita”, disse-me. Ai os homens do Nuorte… Este Bruno é novinho mas já vai no bom caminho…).
Francesinha
O seu criador foi Daniel David da Silva, natural de Braga, que imigrou ainda jovem para Lisboa, onde trabalhou num restaurante. Esteve depois na Bélgica e mais tarde em França e foi aí que terá recebido inspiração para o prato que futuramente iria criar. Existe a tese de que as origens da francesinha estão associadas às Invasões Francesas, pois já as tropas de Napoleão comiam pão de forma com vários tipos de carne e muito queijo. Mas esta versão tem merecido pouco crédito por parte dos historiadores.
Foi Abrantes Jorge, proprietário do Restaurante A Regaleira, na Rua do Bonjardim, quem convenceu Daniel David da Silva a vir para Portugal confecionar o prato que o deixava deliciado. Deu-lhe sociedade no restaurante, e assim a francesinha começou a sua história no Porto, na década de 1950. Na altura, Daniel era já bem conhecedor da cozinha francesa e na base da francesinha terão estado as receitas de croque-madame (uma espécie de tosta mista), de croque-monsieur (outra tosta mista mas servida com molho branco e mostarda dijon) e, sobretudo, o molho welsh rarebit, conhecido por ser picante.¹
E foi um amigo de Daniel da Silva – Júlio Couto, economista, técnico de contabilidade – quem acabou por dar-lhe o nome. Algures no ano de 1952, Júlio Couto e a “rapaziada” desaguaram no Regaleira, como era costume, e foram surpreendidos pelo ex-emigrante: “Ele disse-nos que tinha feito uma coisa nova, uma invenção, e queria que nós provássemos”, explicou. Em pouco tempo chegou à mesa uma sanduíche generosa, banhada a queijo derretido e molho alaranjado. Júlio foi um dos primeiros a provar e o resultado foi, no mínimo, amor à primeira dentada. “Ele tinha feito um prato do caraças”. “Quando acabámos de comer perguntei-lhe: ‘Olha lá, que nome é que vais dar a isto para servir amanhã?’”. Daniel não se lembrou de nada, mas Júlio sim: “Naquele momento baixou a minha maldade toda [risos] e comecei a pensar: isto era uma coisa picante, muito agradável… Porque não chamar-lhe francesinha?”
À partida a ligação pode não fazer muito sentido, mas ele existe — pelo menos segundo o entrevistado. “Na altura as mulheres portuguesas eram muito conservadoras, mas as francesas não, eram bem mais liberais e confiantes”, relatou. Ora na sua cabeça, a junção de ideias foi simples: as “catraias francesas” faziam-lhe lembrar as características do prato e ficou assim.
A invenção do senhor Silva foi um sucesso quase instantâneo. Júlio recorda que em pouco tempo “as pessoas começaram a fazer fila à porta do restaurante” e muitas vezes comiam mais que uma. O sabor intenso e o cariz pesado desta criação de Daniel estava em linha com os típicos sabores nortenhos e isso “poderá ter sido a chave do sucesso”. Escusado será dizer que também não tardaram a haver outros espaços a servir francesinhas, sempre diferentes desta original (que era feita com pão bijou e não com o já habitual pão de forma) mas igualmente populares. “Os empregados iam saindo para outros sítios e depois tentavam replicar a receita”, e um desses casos foi o do “gajo que saiu de lá e foi para Gaia, para um restaurante que fica logo à saída da ponte, à direita”, o café Mocabe. “Ele decidiu replicar a receita — à sua maneira — e passaram a haver francesinhas em Gaia. A coisa foi funcionando assim sucessivamente.” Não há receita nenhuma original, toda a gente faz a coisa à sua maneira. Não há um papel que diga ‘esta é que é a verdadeira receita”. Fiambre, queijo, linguiça, um bife de vaca, pão e molho são alguns dos elementos mais facilmente encontrados, mas a variantes são quase infinitas.²
Livraria Lello à esquerda.
Edifício da Livraria Lello e Irmão, construído em 1906 ao estilo neogótico.
Universidade do Porto
¹ Teixeira, Alfredo (2010, 20 novembro) “Francesinha nasceu para as mulheres”. Diário de Notícias, Página consultada a 21 maio 2020,
<https://www.dn.pt/portugal/norte/francesinha-nasceu-para-as-mulheres-1715506.html>
² Lopes, Diogo (2018, 10 junho) “”Porque não chamar-lhe francesinha?” A história de como foi batizada a famosa iguaria portuense”. O Observador. Página consultada a 21 maio 2020,
<https://observador.pt/2018/06/10/porque-nao-chamar-lhe-francesinha-a-historia-de-como-foi-batizada-a-famosa-iguaria-portuense/>