096 – Em Plano Água Izé & a Comer Calulu

Pelo que percebi, esta casa está em obras e destina-se a receber turistas.

Este cão tem as orelhas feridas, eventualmente com sarna, não sei. Os rapazes disseram-me que está a ser tratado.

As raparigas lá ao fundo, sentadas à direita, chamaram-me. Esta povoação chama-se Plano Água Izé.

O bebé chama-se Anselmo e tem 13 meses. “É o Anselmo Ralph?”, perguntei eu na brincadeira. Sim, o Anselmo Ralph esteve aqui em São Tomé e Príncipe, e portanto o nome do bebé foi inspirado em si!

Elas (acho que são apenas raparigas) jogam um jogo divertido, e eu observo-as durante algum tempo. Estão a atirar latas esmagadas umas às outras, e a rapariga no meio tem de escapar-lhes. Porque elas tentam acertar-lhe. Ela é ágil, e consegue fugir à maior parte delas.

Bolinhos de coco à venda por uma dobra, cada. Quatro cêntimos de euro. Comprei dois  levo-os comigo para comer de sobremesa, ao almoço. Hoje espera-me o calulu, na Nelta!

A Nilsa, de 26 anos. Foi ela quem me chamou quando eu estava a passar ao longe, e efetivamente eu não fazia tenções de entrar na aldeia – ia-me embora, pois estou com o sentido no calulu e quero despachar-me!

Os garotos de volta da minha bicicleta, enquanto eu e a Nilsa e o resto das raparigas estamos na galhofa, de volta dos bolos e das fotografias. Eles estão muito ocupados a observar todos os detalhes da bicicleta, e comentam-nos entre eles.

Ainda passei 45 minutos em Plano Água Izé. O tempo passa a toda a velocidade. E a hora de almoço aproxima-se. É meio dia e o calulu espera por mim!!!
Regresso de táxi partilhado à cidade. Esperei um pouco, à saída da aldeia, na estrada principal, juntamente com outras pessoas. Esperei 5 ou 10 minutos, e estive entretanto a falar com as pessoas na paragem. Ou suposta paragem, porque não há nada. Só eu é que espero um táxi, efetivamente. E saiu-me um taxista portista, carago!

A bicicleta não cabe no táxi, é necessário baixar o banco. Pediu-me cem dobras, eu não quis e disse que iria esperar pelo próximo táxi. Talvez já venha uma das carrinhas maiores, em que a bicicleta costuma caber. Propôs-me então 50 dobras, e eu aceitei. Este taxista não quis desmontar o pneu da frente, mas eu tenho as ferramentas comigo, e ainda lhe propus isso. Ele disse que não era preciso.

As três passageiras que viajam comigo.

São 12h40 e fiz 19 km no táxi.

Agora tenho o táxi partilhado até Belém. Recordo que não existem transportes públicos em São Tomé e Príncipe. São taxistas que efetuam o transporte da população, em táxis partilhados, com um percurso bem definido, como os autocarros.

Esta foto foi tirada à pressa com a câmara fora da janela do táxi, sem eu estar a ver. Porque é a primeira mulher que eu vejo a conduzir uma mota! Ainda só tinha visto uma rapariga a ter aulas de condução, na crónica 75.

Cheguei a Belém! São 13h. Foram os habituais 8 km entre a cidade e o hotel. Hoje tenho 28 km na bicicleta, e 27 em táxi partilhado.
Os dois simpáticos rapazes – Marcelo e o Raílson – andam por aqui a brincar e vêm receber-me.

Troquei de roupa, lavei as mãos, e às 13h15 estou no restaurante da Nelta! À espera do tão famoso calulu!! E muito esfomeada! O calulu está na panela a ferver e está pronto dentro de poucos minutos!

Ei-lo, o famoso calulu! Cheira bem! E também sabe muito bem, posso garantir-vos. Desapareceu tudo. Não sobrou nada. A Nelta perguntou-me se eu queria mais, e eu disse que não, mas hoje arrependo-me. Devia ter comido uma barrigada de calulu! Devia ter repetido várias vezes!

A Nelta explica-me entretanto: o calulu é feito com folhas e peixe. “Folhas” – é a palavra usada para legumes e plantas. Maquiqué, quiabo, beringela, folha da mina, libô de água, libô de quintal, otage e outras. No tempo da gravana é difícil arranjar todas as folhas, diz-me a Nelta. Leva muitas mais. E eu não faço ideia se os nomes das folhas estão bem escritos.

Depois: banana-prata (a bola de massa). Ou seja, não é banana-pão, aquela usada em São Tomé e Príncipe para cozer e fritar, esta é a banana normal, a fruta que se come. E aquela pasta calha ali que nem uma luva.

Depois: farinha de mandioca, na taça à esquerda, para misturar com o calulu. E eu misturei e cumpri as regras todas.
Os peixes: maxipombo, andala, atum, voador, e outros tantos.
Tudo por 50 dobras. Ainda hoje sonho com este calulu.

Volto a citar a investigadora portuguesa Maria do Céu de Madureira, da Universidade de Coimbra:
“Um outro exemplo de espécies medicinais utilizadas na alimentação, é a utilização de folhas de libô (Vernonia amygdalina) na confecção de um dos pratos típicos, o Calulu. Neste caso, e atendendo ao uso tradicional desta planta como anti-malárica, podemos estar perante uma forma de profilaxia, ou de prevenção da doença, uma vez que este é um prato que se consome habitualmente todas as semanas e em todos os estratos sociais.”¹

Hoje tenho um cliente novo, à espera duns bocadinhos, mas teve azar, hoje não calhou nada a ninguém!!

Pois, meus amigos, hoje não há nada…

Como habitual, fui comer a sobremesa para o hotel. Os bolinhos de coco, de Plano Água Izé, sabem muito ligeiramente a coco, e não têm quase açúcar nenhum. Já a fatia de bolo que comi no Príncipe, feito pelo Fulberto (na crónica 21) também tinha muito pouco doce. Não me admira que a Dinalda tenha achado a bola de berlim, na Costa da Caparica, muito doce, e não tenha apreciado. Por aqui poupa-se açúcar.

E eu estou a ficar sem dinheiro outra vez. Tenho 1.250 dobras guardadas para o transporte da bicicleta no avião. É o preço do transporte da bicicleta, que já paguei também para cá. Tenho 250 dobras guardadas para o táxi que me levará ao aeroporto – será o taxista Kymilson a levar-me – ele tem uma carrinha comprida onde cabe a bagagem e a bicicleta. Neste momento tenho 121 dobras para gastar. Amanhã ainda tenho de almoçar e comprar pão. E no dia seguinte parto. Esta cena de não haver multibancos para levantar dinheiro causa alguma pressão.
Tenho 9,80 dobras de saldo no telemóvel e 894 MB de internet. Comprei 3 GB, no Príncipe, logo no primeiro dia. Internet não me falta, portanto. Telefonei ao Kymilson a reservar o táxi para 6ª feira, e a chamada custou-me 2,52 dobras (0,10€).

O Raílson veio perguntar-me se quero jogar às cartas. O Marcelo está com vergonha escondido atrás duma árvore. Ao aproximarem-se ambos, eu explico-lhes que estou estafada, que fui à Boca do Inferno, que vou tomar banho e lavar o cabelo, depois vou sentar-me e selecionar as fotos do dia. Depois vou dormir.
Eles deitam-se às 19 ou 20h. O Marcelo acordou às 6, o Raílson às 5h30. Amanhã talvez eu  jogue às cartas com eles, amanhã ainda não decidi o que vou fazer. Também tenho isso para analisar e decidir, agora.

O Marcelo e o Raílson têm 12 anos e em breve tornar-se-ão adolescentes (e provavelmente já não quererão falar comigo) e depois adultos, com todas as alegrias, pesos e responsabilidades que a vida adulta traz. Mas agora têm 12 anos, brincam o dia todo, estão nas férias escolares, aparentemente bem alimentados, saudáveis, a vida corre-lhes bem.
O Marcelo sofre de asma, é preciso ter algum cuidado. E enjoa quando anda de carro. No entanto da última vez que andou ficou bem, com a idade deverá passar-lhe. Diz que vai com a cabeça fora da janela, para apanhar ar. Pareço eu dentro dos barcos.

Entretanto fui completamente desprezada pelas galinhas. Nem sequer os bocadinhos de pão comeram, que lhes deixei ontem ao final da tarde.

Às 17h30 estou despachada. Sinto já uma certa nostalgia pelas tranquilas tardes passadas aqui nas traseiras do resort, com as galinhas e o galo a esgaravatarem na terra, comigo entretida a selecionar as fotos do dia e a fazer backup para o telemóvel. Para a cloud não tenho wifi, não dá para fazer backup. O Célio não responde à mensagem que lhe enviei sobre isto. Disse-me que está doente, mas não sei o que é, supostamente será renite alérgica, tinha-me dito antes de partir.

Só se ouvem pássaros, e vozes de crianças ao longe.
A toalha branca está ali pendurada no estendal, já apareceu novamente. Durante um dia desapareceu, a Virgínia também soube escondê-la. As restantes toalhas, bem como as fronhas e o lençol, são meus. Vai aqui um certo tráfico de toalhas. Umas para mim, outras para o segurança Abílio, outras escondidas pela Virgínia.

O Abílio veio agora dar uma volta às traseiras espreitar-me. Riu-se quando eu levantei a cabeça e olhei para ele. Eu não quero conversar, gosto de estar sozinha, pelo que baixo novamente a cabeça e continuo ocupada desta vez com os apontamentos tirados ao longo do dia. É necessário completá-los enquanto me lembro das coisas. Na altura em que estou a falar com as pessoas nem sempre é oportuno escrever. Outras vezes sai tudo mal escrito com a pressa, podendo mesmo tornar-se ininteligível se eu não corrigir hoje, enquanto está tudo fresco na memória.

Ponho já o alarme para as 7. Se o telemóvel bloquear escuso de acordar outra vez durante a noite preocupada com o alarme. Fiquei com o telemóvel a funcionar a meia haste com a brincadeira do Pico do Príncipe.

Às 6 da tarde, noite cerrada, ponho spray anti-mosquitos na pele. Não me apetece pôr no quarto. Ontem não pus e tive uma noite sem mosquitos. Aborrece-me estar agora mais meia hora fora do quarto. Petisco qualquer coisa e vou dormir. A Virgínia, para eu não me esquecer que tenho várias latas de salsichas ao meu dispor (duma marca portuguesa), tirou-as da embalagem de cartão e pôs duas delas mesmo ao pé dos pratos para eu vê-las todos os dias. Tenho ovos, leite, pão, bananas, papaia, bolachas e até os meus cereais de chocolate, trazidos de Lisboa, ainda duram. E nozes também. Trouxe nozes de Lisboa e ainda as tenho. E mais um iogurte que comprei ontem. E metade duma batata doce cozida, que gosto tanto. Trouxe-a ontem da Nelta. Acabou por ir para as galinhas. Que me ignoram.
Com toda esta abundância de comida, como apenas uma banana e leite, como é hábito. Estou bem.


¹ Madureira, Maria do Céu (2012) “Plantas Medicinais e Medicina Tradicional de São Tomé e Príncipe” in Actas do Colóquio Internacional São Tomé e Príncipe numa perspectiva interdisciplinar, diacrónica e sincrónica”, pp 433-453, Lisboa. Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Estudos Africanos (CEA-IUL), ISBN: 978-989-732-089-7 Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), ISBN: 978-989-742-002-3. Página consultada a 22 janeiro 2020,
<https://repositorio.iscte-iul.pt/handle/10071/3917>

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