086 – São João dos Angolares
Partimos às 9h35 do Pico Cão Grande. No Instagram da alpinista Sav Cummins, esta mostra uma foto das outras duas alpinistas a partirem daqui, a saírem da selva com um ar muito sorridente, e o texto diz: “Para fora da selva vamos!! Lentamente faremos o caminho para casa nos próximos dias (vêem a emoção nos rostos de @sashadigiulian & @angela_vanwiemeersch!?)¹
Ai não!… eu estive dez minutos no Pico e fui-me logo embora. É muitíssimo agreste porque está permanentemente tudo molhado e enlameado. Nem sei como conseguiram elas (e toda a equipa santomense que as acompanha, e também canadiana – pois uma das operadoras disse-me que era canadiana), nem sei como conseguiram elas e toda a equipa permanecer aqui vários dias acampados. Um peixe deveria sentir-se melhor aqui do que os humanos.
Para ajudar à festa, eu tenho as minhas esfoladelas nos pés, feitas na caminhada pelo ilhéu Bom Bom, no Príncipe (crónica 17). Os pensos aguentaram-se até ao Pico, mas agora vão sair. E as feridas vão abrir novamente.
Chegámos às 11h11. O regresso durou 1h36, portanto. Para lá foi 1h40. Foram 12,3 km e 3h26 de caminhada no total. Agradeci ao guia Cecílio.
Quando a pele secar e as esfoladelas começarem também a secar, vão arder loucamente com a tira das sandálias a sarrafar permanentemente.
Pedi ao motorista Adosindo para estacionar o táxi e aguardar, pois eu quero dar uma volta de bicicleta aqui em São João dos Angolares. A Aleida (que conheci no Príncipe – crónicas 33 e 34) mandou-me mensagem esta manhã dizendo que está aqui. Vou tentar encontrá-la. Mandei-lhe uma mensagem avisando que cheguei. Mas a Aleida respondeu-me a dizer que entretanto já está em Porto Alegre.
E agora a mudança da frente não funciona. E o meu capacete está com outras medidas, tive de reajustá-lo à minha cabeça. Está visto que nas três horas e meia que estive ausente, andaram uns meninos a brincar com a minha bicicleta. Eu ainda pensei em deixá-la presa com o cadeado, para ninguém poder andar, mas achei excessivo. Bom, agora a mudança da frente não funciona, só muda quando lhe apetece, às 5ª ou 6ª tentativa. Está lindo. E eu sem uma oficina de bicicletas. Chamei o motorista Adosindo à atenção. Ele disse que ninguém mexeu na bicicleta. Agora já não interessa. É a segunda vez que deixo a bicicleta sem supervisão, é a segunda vez que tenho problemas. Naturalmente que as pessoas não fazem por mal, mas não conhecem estas bicicletas, não estão habituadas, e causam-lhe dano sem intenção. Tenho três dias pela frente e vai andar assim, paciência. Quando chegar a Lisboa vai direta para o mecânico.
A Nina, sentada nas escadas com o pano amarelo, pergunta-me se não lhe arranjo um emprego. Aqui não há, diz-me. Para a cidade é 50 dobras o táxi (100 ir e voltar diariamente). Para tirar-lhe uma foto tenho que oferecer-lhe o almoço, diz-me. “Vamos ali comer”, e aponta para o fundo da rua. Todos se riem, à volta, e eu também, com a sua boa disposição perante o dramatismo da situação. Faço ideia que empregos é que existirão aqui em São João dos Angolares… Praticamente nada, pois claro. Esta zona sul da ilha de São Tomé é das mais pobres do país.
Os “angolares” têm uma origem histórica: com o endurecimento do regime de trabalho nas plantações de açúcar, na época do colonialismo (século XVI), intensificou-se também a fuga de escravos. Graças ao relevo montanhoso desta ilha vulcânica e à densa floresta tropical no seu interior, em São Tomé esses fujões encontraram condições favoráveis para estabelecer pequenas comunidades no sul da ilha, fora do controle das autoridades coloniais no norte. Esses grupos de escravos autolibertados, chamados mocambos, frequentemente assaltavam as fazendas para roubar alimentos e escravas, pois havia um déficit de mulheres entre os fugitivos, visto que foram maioritariamente homens. Por volta de 1530, os assaltos dos fugitivos rebeldes preocuparam as autoridades de tal maneira que foi constituída uma milícia que, durante décadas, fez uma guerra de mato contra os mocambos.
Em 1549, dois jovens negros nascidos no mocambo apareceram na cidade afirmando que, como filhos de negras livres, pertenciam à categoria de africanos livres. Como isso não foi aceite pelas autoridades locais, eles enviaram uma petição ao rei para não serem tratados como escravos, a qual este aprovou. A última expedição militar contra eles ocorreu nos fins do século XVII. Desde então, a comunidade dos quilombolas [escravos africanos e afrodescendentes que fugiram das fazendas e das plantações de cana-de-açúcar, para formar pequenos vilarejos chamados de quilombos] a comunidade dos quilombolas teve alguma autonomia e viveu em isolamento relativo no sul de São Tomé. Esse facto é notável quando se sabe que a ilha tem apenas 50 km de cumprimento. Tal isolamento foi possível devido às referidas características geográficas, que também condicionaram a concentração da população no norte, e ao declínio económico da ilha. Além disso, o quilombo foi considerado hostil, visto que “nenhum estranho se aventurava a entrar, sob pena de não sair com vida”. Em documentos do século XVIII, os descendentes dos escravos fugitivos são chamados “angolis” ou “angolas”, em referência à sua suposta origem. A partir do início do século XIX, ficaram conhecidos por “angolares”. Eles conseguiram manter sua autonomia até ao último quartel do século XIX.
Na segunda fase de colonização de São Tomé e Príncipe, desta vez com plantações de café e cacau (século XIX), a expansão destas alcançou regiões que tinham ficado incultas durante a indústria do açúcar, no século XVI. Em 1878, o território dos angolares no sul de São Tomé foi ocupado pelas autoridades coloniais. Naquela altura, eles formavam uma comunidade de cerca de 2.000 pessoas. A ocupação do seu território não resultou em mudança da sua vida económica, dominada pela pesca artesanal. Contudo, levou a um maior intercâmbio com os forros [antigos escravos alforriados, ou seja, libertados; e que passaram a formar os crioulos maioritários de São Tomé] e a alguma assimilação de sua cultura, sem que os angolares perdessem completamente as suas características socioculturais e linguísticas.²
A Nina lá acedeu a tirar uma foto comigo, e quis pentear o cabelo primeiro. Conta-me que tem uma filha em Portugal a estudar, com 18 anos, no 12º ano. Eu deixei-lhe então o meu nome escrito num papel para contactarmos através do Facebook e eu mandar-lhe esta foto.
E efetivamente contactámo-nos – eu e a sua filha Dinalda. Mais do que contactarmos, conhecemo-nos mesmo pessoalmente, em Lisboa. Fomos à praia em agosto!! A Dinalda frequenta o curso de Técnico de Turismo Ambiental e Rural, na Escola Profissional da Sertã, com uma bolsa de estudo. Quando falámos estava de férias, em agosto, e alojada temporariamente em Almada, na margem sul. Perguntou-me se podia conhecer-me. Claro que sim, combinaremos algo. E sendo agosto, altura de praia, propus-lhe irmos à praia. A Dinalda não conhecia ainda a Costa da Caparica, foi a sua estreia. Não tinha inclusivamente um biquíni nem toalha de banho, mas desenrascou-se com uns calções e camisa de alças. Eu emprestei-lhe uma toalha. Fica aqui um pequeno vídeo seu, feito com o telemóvel, a contactar pela primeira vez com as águas geladas da Costa da Caparica. Ah pois é. Não tem nada a ver com as águas mornas de São Tomé e Príncipe. A Dinalda nem quis ir ao banho. Molhou os pés e fugiu. Experimentou também uma bola de berlim com creme. Nunca tinha provado. E não se deu bem com o creme, diz que é demasiado doce, teve de tirá-lo com um lenço de papel e acabou por não comer uma parte da bola. Tudo isto é muito diferente da sua ilha tropical. Nem quero imaginá-la no frio da Sertã. Porque agora é verão, faz sol e calor, estamos de papo para o ar na praia. Com 5 ou 10 graus de temperatura na Sertã deve ser lindo para uma pequena santomense de 18 aninhos, nada habituada a estas coisas. A Dinalda vai à praia de Angolares, conta-me, mas não gosta de tomar banho, só de passear na praia. No ano novo é que toda a gente vai à praia celebrar e tomar banho. Em Angolares o tempo é mais chuvoso.
Contou-me que a matricularam neste curso sem perguntar-lhe qual queria. Ela e um rapaz eram os melhores da turma, em São Tomé, por isso foram selecionados para uma bolsa de estudo de forma a continuarem a sua formação em Portugal. É a mais velha de quatro irmãos do lado da mãe. Do lado do pai tem outro irmão na universidade em São Tomé. Não sabe o curso dele. Fala com a mãe por chamada normal através do Facebook, dado que o vídeo gasta muitos dados.
Lá em cima está o taxista Adosindo à minha espera. Eu estou muito aflita com as esfoladelas dos pés. Agora que arrefeceram, e sem pensos para as protegerem do contacto com as sandálias, ardem imenso. Nem consigo caminhar até à Roça, que gostaria de ir conhecer.
E ainda me aborreci pelo caminho, antes de chegar aqui, pois assisti a 4 ou 5 cães a atacar um mais débil, doente e sarnento. Tentei separá-los. Os homens continuaram encostadas ao muro sem fazer nada. Confesso que me enervei com a violência deste episódio, e disse muitas asneiras, e eles nem perceberam que eu os ofendia. Continuaram encostados ao muro, indiferentes. O cão, já doente, até podia ficar ainda mais ferido atacado pelos outros, que eles estavam-se nas tintas. Nem um “xô”.
Relativamente à língua, aqui fala-se um crioulo específico, como já os coveiros do cemitério de Trindade (na crónica 76) me referiram, explicando-me que é muito difícil de entender mesmo para eles, que falam crioulo.
Recordo que a maioria da população em São Tomé e Príncipe é de origem cabo-verdiana. Foram recrutados trabalhadores em vários países, como Angola, Moçambique, Gabão, Libéria, porém conforme descrevi na crónica 9, a maioria da população atual é composta por ex-trabalhadores cabo-verdianos e seus descendentes. Os trabalhadores cabo-verdianos eram aliciados para vir trabalhar nas plantações de cacau de São Tomé e Príncipe, e as grandes secas e fomes que se registavam no seu país propiciou a isso também. Duas das piores fomes de Cabo Verde ocorreram em 1941-48, matando cerca de 45.000 pessoas. Entre 1900 e 1970, cerca de 80.000 cabo-verdianos foram enviados para São Tomé e Príncipe.³
Para o trabalho forçado, vão-se estabelecer contratos de trabalho de três a cinco anos que infelizmente não eram exequíveis, pois muitos dos que vinham não conseguiam regressar. Havia manobras dos patrões para, no momento de atingir o fim do contrato, não os deixarem regressar. Em Angola, os sobas insurgiram-se contra a contratação para São Tomé e Príncipe porque os seus pares não regressavam.⁴
A língua crioula de Cabo Verde, o kabuverdianu, difundiu-se portanto por todo o arquipélago de São Tomé e Príncipe, onde é falada com variações locais. Por razões geográficas e históricas, em São Tomé e Príncipe apareceram três línguas crioulas:
- além do forro, o crioulo maioritário;
- a lunga ngola dos angolares;
- e o lung’yie (literalmente, “língua da ilha”) ou principense.
A língua politicamente dominante, o português, serve como base lexical destas quatro línguas crioulas.²
Aqui em São João dos Angolares fala-se portanto um crioulo específico, chamado de “lunga ngola”, ou angolar, provavelmente uma mistura do crioulo cabo-verdiano com outras línguas nativas, nomeadamente de Angola.
Passei 40 minutos a passear de bicicleta aqui em São João dos Angolares, ainda fiz 2 km, às voltas, e é altura de prosseguir caminho. Partimos às 12h20.
¹ Cummins, Savannah (2019, 15 agosto) “Out of the jungle we go!!” Perfil Instagram “sav.cummins”. Página consultada a 8 janeiro 2020,
<https://www.instagram.com/p/B1MbeKXhj6S/?utm_source=ig_web_copy_link
² Seibert, Gerhard (2015) “Colonialismo em São Tomé e Príncipe: hierarquização, classificação e segregação da vida social”. Anuário Antropológico [Online], II, posto online no dia 01 junho 2018. Página consultada a 8 janeiro 2020,
<https://journals.openedition.org/aa/1411> ; DOI : 10.4000/aa.1411
³ “Fome em Cabo Verde” (s.d.) Wikipedia Página consultada a 8 janeiro 2020,
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Fome_em_Cabo_Verde>
⁴ Henriques, Joana Gorjão (2016, 9 junho) “São Tomé e Príncipe – A escravatura durou até à independência”. Jornal Público. Página consultada a 8 janeiro 2020,
<https://acervo.publico.pt/mundo/noticia/em-sao-tome-e-principe-a-escravatura-durou-ate-a-independencia-1729886>