084 – Termina o 24º Dia e Começa o 25º – A Caminho do Pico Cão Grande

Cá está o Marcelo, ao centro, o qual me acompanhou nas lides da oficina, na crónica 77. O Marcelo ofereceu-se nesse dia para apanhar o fruto “untué” e dar-mo a provar. É hoje! São agora 11h30, já estou em Belém, perto do hotel, cheia de tempo e com o dia livre. De tshirt vermelha é o Raílson, e entretanto apareceu o Lúcio, à direita, e levaram-me os três a apanhar untués.

O Marcelo e o Raílson a comerem dois untués. Apanharam um terceiro do chão e deram-mo. Guardei-o, será uma das minhas sobremesas de almoço.
A bicicleta ficou com os pneus cheios de fruta-pão colada. Eles ajudaram-me a tirá-la, na medida do possível, com um pau.

No regresso ao hotel, na estrada, ouve-se grande algazarra de vozes e eu pergunto o que é. É um campeonato de jogo de cartas, entre várias terras; e Belém (ou Trindade?, não souberam dizer-me) está a ganhar, explicaram-me o Marcelo e o Raílson.

São quase duas da tarde. Ainda adormeci, antes. Cheguei ao resort ao meio-dia, estendi-me na cama para descansar um pouco (fiz 6 km de bicicleta) e acabei por adormecer. Era uma e meia da tarde quando a Virgínia me acordou – trouxe consigo um taxista chamado Kymilson para combinar comigo a ida ao Pico Cão Grande. Falta agora um guia para levar-me mesmo à base do Pico. Este taxista vai falar com um tal de Kaiser e logo me dirá algo.

E hoje vou almoçar carapau com matabala cozida e legumes. Esta é a Nelta, a dona do restaurante. Os legumes cozidos sabem-me particularmente bem – não tenho comido legumes por aqui, dado não poder comer saladas cruas. Só posso comer legumes cozidos, conforme instruções da Consulta do Viajante (crónica 3) e esta foi das raras vezes que mos serviram.

Matabala. É parecida à batata.

Veja-se esta notícia de dezembro de 2019:
O estudo agroalimentar encomendado pelos programas de iniciativas produtivas, PIPAGA, revela que o consumo de produtos locais como a banana, matabala e fruta-pão é baixo.
Para inverter a tendência, a PIPAGA através de cooperativas, está a formar e a apoiar tecnicamente os agricultores e produtores nacionais para a necessidade de reforçarem a produção e quiçá começarem a exportar.
A banana, a matabala e a fruta-pão foram em tempos idos a base da alimentação são-tomense. No entanto, fruto da mudança de hábitos e costumes que caracterizam as nações e à qual São Tomé e Príncipe não escapou, foram substituídos por produtos como o arroz, o feijão e o esparguete que são hoje os mais consumidos nas ilhas.
São Tomé e Príncipe, país de terra fértil e chuva abundante para a agricultura, tem agora a oportunidade de voltar atrás na história, e recuperar os bons e velhos hábitos alimentares. Tal iniciativa traria de pronto duas vantagens: a redução da dependência da importação de bens essenciais como o arroz, feijão e esparguete; e ganhos financeiros com a exportação da banana, matabala e fruta-pão.¹

Hoje existem outros clientes no restaurante da Nelta. Como eu fotografo habitualmente toda a gente que está comigo nos restaurantes santomenses, perguntei-lhes se podia fotografá-los também. O cliente de tshirt azul disse-me que são um grupo de três senegaleses de férias em São Tomé. Mas não, é mentira, são de São Tomé, disse-me pouco depois. Também disse que é polícia, mas agora já não faço ideia se é verdade. E ainda me convidou para a discoteca e perguntou-me o meu nº de telefone, mas eu só troco contactos de táxis, disse-lhe.

O untué também cola exatamente como a jaca. Boca e mãos. Ataquei logo com óleo da cozinha – o usado para cozinhar. Mas eu não quis pôr óleo na boca, pelo que, agora, quando bebo água da garrafa, fico com os lábios colados à garrafa. E a faca com que cortei a jaca, há dias atrás, ainda tem vestígios de cola na lâmina. Deve ter secado e a Virgínia não consegue tirá-la. Estes frutos santomenses estão todos armadilhados.
E comi a carambola sem casca, como é regra da Consulta do Viajante. Não comi quase nada, portanto, pois a carambola é um fruto de tiras finas.
Voltei a picar a casca da papaia e deixei um montinho na relva, para as galinhas. Elas têm medo e não comeram nada do outro lado da casa. Agora deixei do lado dos quartos.

Às 4 da tarde tomo um banho. Continuo cheia de sono.
Amanhã se não for ao Pico Cão Grande, vou de bicicleta a Água Izé. Tenho 5 pessoas a tratar de organizar e orçamentar a minha caminhada até ao Pico: a Nelta (será o marido que veio falar comigo? Pediu 120€, nem metade disso, respondi eu); a Virgínia (que trouxe o Kymilson, pede 40€ pelo carro e falta encontrar um guia); o Mayke Jackson (que nunca caminhou até ao Pico, mas diz que tem família lá na aldeia e perguntará, no entanto não quer ir às 5h30, só quer partir às 9); o Dionísio (que conhece os guias daquela zona, mas não me deu até agora nenhum contacto, diz que o perdeu); e o Arcelino (que ia saber o preço e até agora ainda não me disse nada).

Perguntei por “calulu” na Nelta, o prato tradicional de São Tomé e Príncipe, e ela questionou-me que dia quer que faça. Por causa da história do Pico eu não sei dizer-lhe. Que pena eu ter perdido a oferta do jardineiro Dimas, do Museu Nacional (na crónica 47). Mas não posso ir-me embora sem provar o calulu. Hei-de conseguir combinar isto com a Nelta.

O segurança Abílio chegou às 4 da tarde. Efetivamente sinto-me mais segura assim. Com janelas e portas tudo escancarado, enquanto tomo banho. Ele vigia a casa.

Às 6 da tarde tenho tudo arrumado e planeado: vou à Boca do Inferno e a Água Izé. Aparentemente ninguém me diz nada sobre o Pico. No Príncipe é mais fácil porque há uma loja do Parque Natural, onde me inscrevo, pago, e me indicam um guia experimentado. Aqui em São Tomé pelo que percebo não há organização relativamente ao Pico Cão Grande, não é hábito visitá-lo, ninguém sabe nada, andam todos a perguntar uns aos outros. Na net não encontro nada, só passeios standard de carro a outros pontos turísticos mais conhecidos. E eu não quero escalar o Pico, eu só quero chegar junto dele, à sua base. Tocar-lhe. Vê-lo de perto.

Fez-me bem o descanso hoje, estou impaciente para pedalar até Água Izé.

Entre as 18 e as 18h45 estive sentada nas traseiras do resort, no alpendre. Há uma mesa e cadeiras. Vejo morcegos de 20 ou 30 cm a esvoaçarem, a fazerem restolhar pesadamente as árvores. Pus spray no quarto, é preciso aguardar 30 minutos.
Como bananas e leite.
Estendi a colcha e a toalha brancas no chão para o segurança Abílio, senão desconfio que ele não vai tomar essa iniciativa. Eu tinha-as deixado em cima duma cadeira.
Ele está estendido na relva a um canto do quintal. Eu não o vejo na escuridão, mas ele diz qualquer coisa ao ver-me, só para eu saber que ele está ali. “Dona!“ – foi o que disse.

Apareceu pela segunda vez uma barata castanha enorme na casa de banho. Eu fui buscar uma sandália para enxotá-la e quando voltei tinha desaparecido. Será que as aranhas gigantes comem baratas? Ou é só mosquitos pequenos? A osga está no meu quarto, fugiu quando eu fechei os cortinados. Foi para outra parte do teto. O spray para os mosquitos não lhe faz mal.
E assim vamos vivendo todos em amena convivência.

Às 19h fui deitar-me, mas ouvi o segurança Abílio a chamar-me. Está uma moça à porta a perguntar por mim, diz. Fui pelo relvado fora ter com ela. É a Nelta a dizer que o marido não consegue falar com o guia, que ele não atende, e se o passeio pode ficar para terça-feira (hoje é domingo). Acedi. Perguntei então se amanhã posso comer o calulu. Ela diz que não dá, que tem de ir à cidade comprar os ingredientes. Ficou para 4ª feira. Se não puder comer na 4ª, fica guardado no frigorífico para 5ª. A Nelta concordou.

Entretanto o Dionísio liga-me por WhatsApp e diz para eu ir amanhã (2ª feira) até Monte Mário. Aí estará um guia à minha espera. São os moradores de lá que conhecem o caminho e levam os turistas. Ai!… Agora preciso dum táxi para levar-me a Monte Mário. O Kymilson não atende o telefone. Combino com o Dionísio para 3ª feira.

Mas não me apetece deixar para depois de amanhã tendo um guia já disponível amanhã. Não, Rute. Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje. Saí então do hotel e fui ao restaurante da Nelta. São 20h. Perguntei-lhe pelo carro. O marido da Nelta telefonou então ao motorista, e deu o ok. Eu telefonei ao Dionísio e ficou tudo combinado para amanhã às 5h30. Aleluia! O carro é 40€, o guia não sei, o Dionísio diz que é um preço simbólico. Tenho de ir ao multibanco levantar dinheiro, já não tenho euros nem dobras suficientes.

São 4 da manhã. Alvorada. O segurança Abílio foi apanhado de surpresa com o meu flash. Tem um rádio aceso ao seu lado, a passar música.
A bicicleta dormiu na cozinha, de porta escancarada, por causa dos pneus com fruta-pão colada. Foi a primeira vez que não ficou comigo no quarto.
Fui à outra casa de banho, do quarto ao lado, ver se há aranhas. Nada. Esta aranha tem mesmo de partilhar a minha. Na sua cabecinha de aranha, não identifica o homem como predador. O Abílio e a Virgínia querem matá-la, eu é que tenho de partilhar a casa-de-banho e ainda defendê-la.

São 4h30 e a luz falta a meio do pequeno-almoço. Ficou tudo às escuras à volta do resort. Voltou meia hora depois.

São 5h30, o motorista Adosindo é pontualíssimo.

Partimos às 5h37 e levamos o segurança Abílio connosco, até sua casa, em Trindade. No rádio vamos a ouvir a RTP África.

O taxista Adosindo vai cumprimentando toda a gente pelo caminho. Nunca foi ao Príncipe, conta-me.

São 6h13, estamos a entrar em Água Izé. Pedi para parar um pouco. É suposto cá vir de bicicleta, mas nada me impede de ficar já com uma primeira ideia.

Aqui já é Ribeira Afonso.

A entrar em São João dos Angolares. Já fiz este caminho na crónica 71. E agora não vamos parar porque tenho que chegar a Monte Mário, onde me espera um guia. Mas no regresso hei-de dar uma volta por aqui, de bicicleta.


¹ Lisboa, Brany Cunha (2019, 12 dezembro) “Estudos incentivam consumo de Banana, Matabala e Fruta-pão”. Repórter STP. Página consultada a 6 janeiro 2020,
<http://www.reporterstp.info/economia/estudos-incentivam-consumo-de-banana-matabala-e-fruta-pao/>

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