077 – Almoço & Lides de Oficinas

Aqui é a cidade da Trindade. Esta rapariga chama-se Samira, tem 11 anos  e pediu-me uma foto. Tirei-lha prontamente.

Este homem chamou-me quando eu ia a passar na bicicleta: “Portuguesa, vem cá”. É atrevido. E eu fui prontamente também. Mas agora têm de ser fotografados, que é para aprender.

Falámos sobre ter filhos e uso de preservativo. Ele diz que é complicado ter 6 ou 7 filhos, e eu perguntei porque não usam preservativo. (Vi várias vezes em distribuição gratuita nos centros de saúde). Nem sei como foi a conversa parar aqui.
Já a senhora dá -me 20 anos. Eu disse “mais”, ela deu 21. Ri-me. Já ele deu-me 32 anos. Eu menti sobre a minha idade, como geralmente faço, por divertimento.

Este autocarro é patrocinado pela Oando, diz ali. A Oando é uma empresa petrolífera da Nigéria. Nos contratos para exploração do petróleo, as companhias assumem a responsabilidade de financiar projetos sociais em benefício das comunidades locais. Até agora ainda não se produziu um único barril de petróleo, mas, só com os contratos assinados com as empresas petrolíferas até agora, o Governo são-tomense já ganhou dinheiro. Existe uma zona de desenvolvimento conjunto entre São Tomé e Príncipe e a Nigéria, onde se perspetiva haver petróleo e gás, e os lucros são repartidos. São Tomé e Príncipe recebe 40%, a Nigéria fica com 60%. O tratado que criou esta zona de exploração conjunta ao longo da fronteira marítima entre São Tomé e Príncipe e a Nigéria foi assinado em Abuja, na Nigéria, em fevereiro de 2001. No total, a zona ocupa uma área de 34.500 km² em águas profundas e tem nove blocos petrolíferos delimitados.
Ficou também acordado que há uma área na zona conjunta em que São Tomé e Príncipe não pode entrar. Existe uma determinada área, em forma de triângulo, que a Nigéria ficou de explorar exclusivamente, sem interferência da parte são-tomense, enquanto perdurar o acordo de exploração conjunta.¹

Esta Zona de Desenvolvimento Conjunta, porém, está inoperante há mais de quatro anos².
Atualmente São Tomé prepara negociações nesta área com os seus vizinhos, Nigéria e também a Guiné Equatorial:

A ministra dos Negócios Estrangeiros, Cooperação e Comunidades de São Tomé e Príncipe, Elsa Pinto, anunciou em setembro de 2019 o início de negociações com a Guiné Equatorial e a revisão do tratado com a Nigéria sobre exploração conjunta de petróleo. A governante referia-se à perspetiva de exploração conjunta de dois blocos, designadamente os blocos 2 e 22 com a Guiné Equatorial e ao termo do tratado com a Nigéria, que tem 20 anos. No evento, Elsa Pinto traçou o histórico dos processos de delimitação de fronteiras não apenas com estes dois países, mas também com o Gabão. A ministra lembrou que, com o Gabão, “o processo foi fácil e rápido”, mas com a Guiné Equatorial “conheceu focos de tensão que foram rapidamente ultrapassados”. “O problema maior surgiu com a Nigéria”, explicou Elsa Pinto, lembrando que este país, em 1980, “ao expandir a exploração para sul, devido a sucessivas descobertas na região, decidiu adotar uma nova lei que altera o princípio da delimitação das suas fronteiras marítimas, passando a utilizar outros critérios que não apenas o princípio da linha mediana”.³

A localização dos blocos na Zona Económica Exclusiva de São Tomé e Príncipe.

Além das áreas conjuntas de exploração de petróleo, São Tomé e Príncipe dispõe ainda de uma zona económica exclusiva.
Na crónica 66, em Neves, falei da exploração do Bloco 1 pela francesa Total e pela angolana Sonangol. O bloco 1 cobre uma área de 3.292 km². Existem mais blocos a serem explorados por outras petrolíferas. Esta imagem, retirada dum Relatório da ITIE (Iniciativa para a Transparência das Indústrias Extrativas de São Tomé e Príncipe)⁴, mostra 19 blocos.
A parte transparente é a área conjunta de exploração. Pelo menos 22 blocos serão, pela notícia acima da Ministra dos Negócios Estrangeiros. Os blocos 20, 21 e 22 pressuponho que pertençam à área conjunta de exploração.
A portuguesa Galp, por exemplo, está presente em São Tomé e Príncipe: em 2015 adquiriu uma participação de 45% do Bloco 6, no qual é operadora. Em 2016 expandiu a sua presença, com a aquisição de uma participação de 20% nos blocos 5, 11 e 12.⁵
No bloco 13, por exemplo, o consórcio constituído pelas empresas britânica BP Exploration e a norte americana Kosmos Energy iniciaram em Novembro de 2019 uma pesquisa sísmica a 3D.⁶
Existem outras petrolíferas noutros blocos, como a anglo-holandesa Shell, por exemplo, que também participa nos blocos 6 e 11.⁷

Enfim. Anda toda a gente à procura de petróleo. Está difícil ele aparecer.

Este é o Harry. Brinca na estrada onde fica o meu hotel.

O Harry vai dar a volta dentro do quintal e vai voltar a toda a velocidade para baixo, para eu fotografá-lo outra vez.

Cheguei às 13h30 ao restaurante da Nelta, ao lado do meu hotel. Tenho 6,3 km na bicicleta. Eu já tinha encomendado um peixe-voador e fruta-pão assada, esta manhã. Desta vez vou experimentar este peixe (Cypselurus lineatus e melanurus – pelo que leio numa revista de pesca publicada na FAO – Food and Agriculture Organization). É um dos peixes mais populares em São Tomé e Príncipe, e citando esta revista:
“Estima-se que mais de 80% do peixe comprado aos pescadores nas praias é vendido fresco. São geralmente as espécies pescadas em abundância como o peixe-voador, ou os peixes que não puderam ser vendidos frescos, que são salgados e secos, ou seja, fumados.”⁸
Bom, mas o meu peixe foi cozinhado fresco e é bastante bom, com a fruta-pão assada.

Peixe-voador de quatro asas (Cypselurus lineatus) voando sobre o mar.
Foto retirada de Minden Pictures.

Cá está o gato que é roubado pelas galinhas. Não consigo defendê-lo, elas são muitas e ele é lento. Portanto, este gato além de não comer as galinhas, ainda é roubado por elas. Tenho uma luta muito grande para afastar as galinhas enquanto ele foge com o pedaço de comida e se esconde no buraco abaixo, atrás da minha mesa, onde elas não passam:

Agora tenho mais um cliente para alimentar.

Finalmente vou experimentar o vinho de palma!

Tem gás e é bom, saboroso, doce. Se não me fizer mal, amanhã beberei um copo inteiro. Com o tempo perde o gás, disse-me a Nelta. Perguntei se não tem água da torneira misturada, a Nelta respondeu que se tivesse água perderia o gás. Pois é verdade, respondi.

Às 14h15 regresso ao resort. Tenho a mansão do inglês por minha conta. Uma empregada de manhã, um segurança à noite. Sossego e tranquilidade. Vim comer a sobremesa a casa: bananas. Lavo os dentes aqui no quintal, sentada.

O papel higiénico está cheio de óleo que espirrou da corrente para a jante e para os discos. Limpo muito bem os discos, mas em princípio não terá salvação. Limpei também o excesso de óleo na corrente com um pano gorduroso que vinha debaixo do assento, e deitei-o fora. É dramático tratar duma bicicleta onde não existem lojas especializadas. Tratam-nas como motas. Exatamente como aconteceu em Timor. Uma bicicleta tem a sua identidade, a sua especificidade, tem regras próprias. Não posso largar a bicicleta um segundo de vista. Porque fazem-lhe mal sem sequer imaginarem.
Já não poderei fazer descidas com grande velocidade, porque só conseguirei travar daí a meia hora. Daí a meia hora já caí em cima do porco ou da galinha. Ou no precipício.
Tenho uma semana pela frente e vou ter de aguentar-me.

Dado que as pastilhas estão a ficar gastas, e eu trouxe umas novas de Lisboa, sob conselho do mecânico lisboeta das bicicletas, que me deu formação sobre como montar e desmontar os pneus (e tudo o resto – pedais também), decidi ir em busca duma oficina para mudarem as pastilhas à minha bicicleta. Encontrei este rapaz na rua, chamado Marcelo, com 12 anos, o qual passou para o 7º ano, e que me trouxe a esta oficina, a pouco mais de 1 km do meu hotel. Mas eu só vi carros na oficina, e encarei-a com grande desconfiança. Também arranjam bicicletas aqui?, perguntei ao Marcelo. Sim, respondeu-me ele.
Eu muito desconfiada. E agora? Não há oficinas especializadas em bicicletas, em São Tomé e Príncipe, tenho portanto que ir a oficinas de motas – e agora de carros. Nem sei o que é pior, se motas, se carros.
O rapaz da tshirt preta trabalha na oficina e diz que sabe mudar as pastilhas. Perguntei quanto leva. Sugeriu 50 dobras, valor que calculo ser excessivo, mas não questionei. Eu desta vez vou observar tudo com muita atenção, para ver se impeço algum disparate.

Felizmente chegou este rapaz com o boné da tropa, e uns óculos de motard na testa, com um ar bastante excêntrico, que domina a coisa. Corrigiu o que o que o outro rapaz estava a fazer, até que assumiu ele próprio as operações. Notou-se a sua destreza a mexer nas ferramentas. Teve de procurar a correta. Comecei a respirar de alívio.

As pastilhas antigas. A da esquerda ainda se aproveita. Deixei ambas na oficina. Dei 50 dobras ao mecânico improvisado com os óculos de motard, ele sorriu e agradeceu-me.

Vou tentar limpar o disco com álcool etílico. 35 dobras. (1,40€, caro, o álcool, heim? É o dobro do preço normal. Se é o dobro para mim, que uso o euro, imagine-se para os santomenses. Tudo importado, claro). O Marcelo levou-me até esta loja, já na descida a caminho da Trindade. Eu quis levá-lo na bicicleta (não sei como, mas perguntei-lhe), mas o Marcelo não quis, disse que não quer maçar-me. Eu perguntei onde é que se põem os pés, no caso de eu levá-lo, ele disse que não dá. Já me pediram três mil vezes boleia, aqui em São Tomé e Príncipe, não sei onde é que as pessoas querem ir, até já é um mistério para mim. Fui então devagar, sentada na bicicleta, com o Marcelo a caminhar ao meu lado.

Pelo caminho, uma senhora perguntou-me: “Chegou a apanhar o táxi?”. Eu olhei-a, surpreendida com esta pergunta inesperada. Táxi?… E ao reconhecê-la, ri-me.  Foi esta senhora que me informou, junto ao mercado da cidade de São Tomé, onde se apanha o táxi para Guadalupe. “Apanhei, sim senhora!”, respondi-lhe. Isto foi na crónica 64, quando eu ia a caminho de Santa Catarina e apanhei um táxi entre a cidade de São Tomé e Guadalupe. Quando desci na bicicleta desde o hotel até à cidade, parei junto ao mercado, e vendo-a sentada a vender algo que não fixei, perguntei-lhe onde se apanham os táxis para Guadalupe. Não a fotografei nesse dia, não tenho nenhuma fotografia sua, portanto, mas agora devia tê-la fotografado. Já começo a ser conhecida por todo o lado. Eu não consigo fixar as pessoas, mas é fácil fixarem-me a mim, sou a única branca de bicicleta, constantemente para trás e para a frente!

Estamos de volta a Belém e o Marcelo mostra-me esta árvore. É uma untueira (Chrysophyllum africanum) e os frutos são os untués. Vejo na internet que a madeira é usada na construção e o fruto é muito apreciado. O Marcelo diz que vai apanhar um untué e dar-mo, para eu provar. Diz-me que é muito bom, que gosta muito. Não será agora porque eu vou recolher-me ao hotel e limpar a bicicleta, mas amanhã e nos próximos dias voltaremos a ver-nos. O Marcelo mora aqui.

Esta menina é filha da Nelta, a dona do restaurante. Vendeu-me um pão por 5 dobras. É um dos grandes. Teve o cuidado de agarrá-lo com um saco plástico e fui eu que o meti dentro dele, virando-o. Muito bem.

Para limpar a bicicleta foram necessárias algumas horas, um rolo de papel higiénico e o frasco de álcool. Vamos torcer para que a coisa corra bem. Onde quer que passe o papel higiénico, vem preto do óleo.
Resultado: fiquei despachada à mesma hora de todos os dias, ainda nem selecionei as fotos de ontem, quanto mais as de hoje. Não descansei esta tarde como era suposto.

Hoje fiz 8,8 km na bicicleta, já incluindo estas andanças de oficinas e lojas na companhia do Marcelo.
Deitei-me às 21h.
Adiós, chicos!


¹ Graça, Ramusel (2014, 22 abril) “O que trouxe o petróleo para São Tomé e Príncipe?” DW – Deutsche Welle. Página consultada a 25 dezembro 2019,
<https://www.dw.com/pt-002/o-que-trouxe-o-petr%C3%B3leo-para-s%C3%A3o-tom%C3%A9-e-pr%C3%ADncipe/a-17583263>

² “São Tomé e Príncipe e Nigéria reactivam acordo de exploração conjunta de petróleo” (2018, 9 agosto). Agência Lusa. Jornal de Negócios. Página consultada a 25 dezembro 2019,
<https://www.jornaldenegocios.pt/mercados/materias-primas/petroleo/detalhe/sao-tome-e-principe-e-nigeria-reactivam-acordo-de-exploracao-conjunta-de-petroleo>

³ “São Tomé prepara negociações no petróleo com Guiné Equatorial e Nigéria”. (2019, 18 setembro). Agência Lusa. Observador. Página consultada a 25 dezembro 2019,
<https://observador.pt/2019/09/18/sao-tome-prepara-negociacoes-no-petroleo-com-guine-equatorial-e-nigeria/>

⁴ “São Tomé e Príncipe 4º Relatório ITIE 2016-2017” (2019, 25 fevereiro). PWC – PricewaterhouseCoopers & Associados, p. 39. Página consultada a 25 dezembro 2019,
<https://eiti.org/files/documents/eiti_stp_relatorio_2016-2017_pt.pdf>

⁵ “Exploração & Produção em São Tomé e Príncipe” (s.d.). Galp. Página consultada a 25 dezembro 2019,
<https://www.galp.com/corp/pt/sobre-nos/o-que-fazemos/exploracao-producao/e-p-em-sao-tome-e-principe>

⁶ Neto, Ricardo (2019, 19 setembro) “São Tomé e Príncipe inicia para breve negociações de petróleo com Guiné-Equatorial e Nigéria, Elsa Pinto”. Agência STP-Press. Página consultada a 25 dezembro 2019,
<http://www.stp-press.st/2019/09/19/sao-tome-e-principe-inicia-para-breve-negociacoes-de-petroleo-com-guine-equatorial-e-nigeria-elsa-pinto/>

⁷ “Grupo Shell assina acordo de comparticipação na exploração de petróleo em São Tomé e Príncipe” (2019, 8 novembro). Macauhub. Página consultada a 25 dezembro 2019,
<https://macauhub.com.mo/pt/2019/11/08/pt-grupo-shell-assina-acordo-de-comparticipacao-na-exploracao-de-petroleo-em-sao-tome-e-principe/>

⁸ Horemans, B., J. Galléne e J.-C. Njock (1994, junho) “Revista sectorial da pesca artesanal em São Tomé e Príncipe”. FAO Library AN:354269. Programa de Desenvolvimento Integrado das Pescas Artesanais na Africa Ocidental (DIPA), DIPA/WP155, p. 12. Página consultada a 25 dezembro 2019,
<http://www.fao.org/3/an097PT/an097PT.pdf>

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