030 – Príncipe – Praia Burra & Regresso a Santo António
A bicicleta ainda está molhada da chuva que caiu durante o almoço. Agora é sempre a descer, calha bem a seguir ao almoço. Mas depois o caminho de volta é o mesmo… Também calhou numa hora boa, a chuva, enquanto almoçava. Vamos ver se agora escapo.
Vem aí chuva! São 14h40 e tenho 27 km feitos.
A subida em direção ao Picão foi feita na companhia de alguns garotos, um deles muito atrevido e autoritário. O que tens dentro da bolsa? Óculos. Dá-me os óculos. Dá-me a bicicleta.
Muitos pedem tudo o que eu tenho, é um mau hábito induzido pelos turistas que cá vêm. Foi frequente pedirem-me a bicicleta. Será que estes garotos estão mesmo à espera que eu desmonte e lhes passe a bicicleta e me vá embora a pé? Por vezes, quando estava com mais paciência, perguntava-lhes isto mesmo. Mas tu achas mesmo que eu vou largar tudo e dar-te a bicicleta? Eles faziam silêncio. Talvez dessem conta, no seu pensamento pueril, do disparate da situação. Doces então pedem constantemente. Doce! Doce!, gritam à minha passagem. Recordo o cartaz afixado no aeroporto, logo à chegada ao Príncipe (crónica 3). “Se trouxer prendas para as crianças, evite os doces e contribua com roupa e material escolar. Mas não distribua nada na rua. Entregue os donativos a uma instituição ou aos mais velhos da comunidade, que farão uma distribuição justa.”
Este hábito dos turistas chegarem e começarem a distribuir as coisas na rua, efetivamente não é positivo, e o resultado está à vista, nas pequeninas crianças que aprendem a ver o Pai Natal a passar todos os dias à sua frente, nos jipes turísticos. A situação tomou tal proporção, que as entidades responsáveis já se vêm na necessidade de afixar cartazes no aeroporto. Em Timor, por exemplo, isto nunca aconteceu. É curioso. Há menos turismo em Timor, é verdade, mas vai havendo. O mesmo nas zonas rurais da China. Este é um hábito criado pelo turismo em São Tomé e Príncipe. E uma criança a quem aliciam com doces é muito difícil de mudar. Naturalmente que as pessoas fazem isto com a melhor das intenções, e pensam nas crianças quando ainda estão em Portugal ou nos respetivos países, e compram coisas e vêm carregadas de coisas, cheias de boas intenções. Mas enfim, já começam a ser muitos turistas e efetivamente é preciso controlar a coisa. Entregar as prendas aos mais velhos da comunidade, por exemplo, é uma boa ideia.
Esta foi a senhora que me indicou o restaurante da Ilídia. De regresso a Santo António voltei a passar aqui e cumprimentei-a, claro, e disse-lhe que efetivamente almocei na Ilídia.
Estive muito tentada ainda a ir a uma terra aqui perto – Fortaleza. Mas ir e voltar ficaria em hora e meia, com umas fotos pelo caminho. Tem muitas subidas e descidas, ademais. Já choveu torrencialmente e eu abriguei-me debaixo dumas árvores junto ao restaurante da Ilídia. Desisti. Hoje foi o último dia que tive para conhecer as terras do Príncipe. Amanhã vou passar o dia todo na subida ao maior Pico da ilha, de 947 metros de altitude, e depois de amanhã parto para São Tomé. Estes 11 dias não deram para conhecer tudo, portanto. Ficaram a faltar-me meia dúzia de praias e terras, e a grande falha foi uma terra chamada Maria Correia, na parte oeste da ilha, que no meu GPS não consta. Só virei a saber da sua existência mais tarde, em conversas com outras pessoas. Tenho que voltar ao Príncipe, portanto, para conhecer o que falta. E já agora tirar uns dias extra para estar estendida na praia o dia todo, sem mexer uma palha. Onze dias não foram suficientes para tudo. Não percebo como podem as pessoas dizer que se conhece o Príncipe em dois ou três dias. Só a fazer rally a toda a velocidade, certamente.
O parque infantil na cidade de Santo António.
Ainda a caminho da cidade, também fui abordada por uma senhora a perguntar-me se encontrei o milharinho. Milharinho? Eu fiquei parada a pensar. (Não sei o que é um milharinho. Eu andava à procura dum milharinho?). A senhora, vendo-me pensativa, sem perceber a pergunta, ajudou-me: “Fui eu que indiquei o caminho, na roça Belo Monte!” E então fez-se luz no meu espírito: reconheci-a. É uma das empregadas do hotel, que estava a trabalhar à porta, fardada, a fazer qualquer coisa das suas lides, e eu passei na bicicleta, cumprimentei-a, e perguntei-lhe o caminho para o miradouro. Era o miradouro! Rimo-nos as duas. “Pois, enganei-me, não é milharinho, é miradouro!”, disse-me ela.
E eu ainda tinha mais esta: o meu almoço de amanhã, preparado pela Kita, que esta tinha de entregar-me. Tínhamos falado ao telefone, a Kita a perguntar-me quando é que eu ia ao restaurante buscá-lo, pois queria ir-se embora. Eu ando em passeios!, respondi-lhe. Estou na praia Burra! A Kita então ia deixá-lo aqui, nesta quitanda ao lado da minha Residencial, para eu vir buscar quando chegasse. Mas ainda a apanhei, afinal. São 16h30.
E tenho também a Osvaldina à minha espera (a qual conheci no 2º dia, na praia Évora – crónica 6). Veio visitar-me. Esteve à minha espera. Logo no dia em que eu cheguei mais tarde. Agora é despachar-me, tomar banho, tratar das fotos e dormir. Amanhã tenho que acordar às 4, e espera-me um dia muito exigente. Não consegui fazer companhia nenhuma à Osvaldina, portanto. Ainda foi conhecer o meu quarto, comeu uma bolacha, perguntou-me se não tenho nenhuma recordação para lhe dar. Opá, eu tenho lá recordações numa bagagem pesada a peso de ouro, com tudo contadinho. Tudo o que tenho, preciso. A única recordação que tenho são pulseiras e sementes do próprio Príncipe, que a Osvaldina poderá ter em abundância.
Pelo que percebi era uma procissão. Saí do quarto a correr e tirei esta foto, em frente à minha Residencial.
Ontem lavei as luvas da bicicleta, hoje estavam secas. Trouxe dois calções de ciclismo, tenho alternado. Hoje lavei os que usei. Os outros entretanto já secaram. Também lavei a tshirt cheia de lama. Tudo com sabonete. Ainda lavei alguma roupa interior minha. Vários dias no mesmo sítio dá para ter estas lides de lavagens. Quando mudo de hotel todos os dias não há tempo para as coisas secarem, têm de ir molhadas para dentro da mala, até ao final do dia seguinte, quando chego ao novo hotel. É muito complicado. Habitualmente acabo por pagar ao hotel para lavar e secar-me a roupa, nem me meto nessas aventuras. Mas agora sempre no mesmo local, torna-se mais prático. Efetivamente nem sei se aqui existe esse serviço de lavandaria. Com sabão azul no tanque ou na ribeira, entenda-se.
Ando de chinelos no quarto, com as feridas dos pés ao ar livre e com pomada cicatrizante, a qual trouxe de Lisboa, na bolsa dos medicamentos. Só de manhã é que ponho os pensos de combate. Amanhã vão ter mesmo de ser muito combativos, os pensos, com um dia inteiro a caminhar.
Às 19h ouvi bater palmas dentro do hotel, pensava que eram outros hóspedes à procura do gerente. Afinal era para mim. Era o guia Biquegila do Parque Natural para apresentar-me o Wilton, o rapaz que vai levar-me de mota amanhã a São Joaquim, às cinco e meia da manhã.
Hoje fiz 36 km na bicicleta. Foi o maior percurso feito na ilha do Príncipe.