018 – Príncipe – Sexto Dia, a Caminho do Infante D. Henrique – na Floresta
Hoje é 4ª feira e espera-me um grande dia. O despertador toca às 4h15. De facto a esta hora ainda não sei que vou ter um grande dia, porque tudo é desconhecido ainda. Ontem à noite apontei para o mapa e disse “Amanhã vou para sul e vou fazer o caminho do Infante D. Henrique”. Faço lá ideia o que é isso. Vejo a estradinha no mapa e é essa que vou fazer. Pelo menos é em sentido contrário à subida do Gaspar; não quero fazer pela terceira vez seguida a subida do Gaspar!
Dão chuva para hoje, levo sacos plásticos para o telemóvel e câmera (esta será colocada dentro da mochila). Não levo biquíni – hoje é só interior, não há praia.
Espalho o repelente de insetos no corpo. Já estou a transpirar.
Pequeno-almoço à luz da iluminação portátil da minha máquina fotográfica. O único uso que dei a esta luz portátil foi mesmo esta: iluminar os meus pequenos-almoços tomados na escuridão do Príncipe, às 4 e meia da manhã. Não há luz. Mas há água.
Aquilo vermelho entre os ovos é doce para barrar no pão. Hoje tenho duas bananas-maçã. Chamam-se assim. São muito frutadas, parece banana misturada com maçã ou laranja. São deliciosas, estas bananinhas-maçã. E tenho café quente no termo.
Comi tudo menos os ovos, que vou levar comigo para quando me apetecerem.
Partida às 5h30. Segundo a aplicação do Maps.me, são 15 km (e os mesmos 15 para regressar, ou seja, 30 km no total).
Hoje já consegui partir à hora desejada, aos primeiros raios de luz. Tudo é mais bonito a esta hora. Ver nascer o sol, ver o mundo a despertar e a ganhar vitalidade. Tudo está calmo e silencioso agora. Salvo seja, os pássaros e os galos já cantam. Qual silêncio… o silêncio é relativo. De facto há grande animação entre a passarada – os seus biquinhos esfomeados já andam ativos. Pois que comam os mosquitos todos, que a esta hora também estão particularmente ativos.
Saio de Santo António, passarei pela Nova Estrela, pelo Terreiro Velho, pela Ribeira Fria, até finalmente chegar ao Infante D. Henrique.
Não sou a única a acordar cedo no Príncipe. De facto acorda-se muito cedo – não só no Príncipe, como em São Tomé também. O facto de anoitecer às 17h30 contribui muito. A maior parte das pessoas não tem televisão, às 20h já parece meia-noite. É propício ao sono. E o facto de já haver luz às 5h30 da manhã, também é propício a levantar cedo. Maravilha.
Eu cumprimento toda a gente ao passar, com um “Bom Dia”, e todos me respondem.
Eu a pensar que tinha escapado à subida do Gaspar, e meti-me noutra pior. A subida de Santo Cristo em direção à Nova Estrela e ao Terreiro Velho, onde estou a ir agora, ainda consegue ser pior. Santo António está num vale ao nível do mar. Para onde quer que se vá, tem de se subir. A não ser que nos metamos pelo mar adentro. E esta é um verdadeiro suplício de Santo Cristo.
Tal como referi na crónica 10, a maior parte das casas não tem casa de banho, pelo que é normal ver as pessoas a urinar na rua (de costas); não é considerado indecoroso. As mulheres baixam-se, levantam ligeiramente a saia e tiram as cuecas para o lado. Eu assisti por duas vezes a isto, uma delas com muita gente à volta. Efetivamente não se vê nada. Defecar é que pelos vistos será mais escondido. Nunca assisti, nem me cruzei com fezes no caminho.
(Este é um tema escatológico, o qual normalmente abordo nas minhas crónicas – mas isto faz parte da vida, e são hábitos dum povo – neste caso derivado das suas carências, creio que não vale a pena esconder o tema). Tive um episódio insólito em Agua Izé, na ilha de São Tomé, onde duas mulheres gritaram iradas na minha direção. Eu pensei que estivessem aborrecidas com a fotografia que tirei, na sua direção. Mas eu não as apanhei, e prontifiquei-me imediatamente a mostrar-lhes a foto, para provar-lhes que não as tinha fotografado, mas sim outra coisa ao seu lado. Até me assustei. Ora foi um mal-entendido. Elas não estavam iradas comigo – elas estavam a dirigir-se ao rapaz que estava ao meu lado, dos seus 15 anos, que tinha feito cocó na cozinha, contaram-me elas. Estavam furiosas e capaz de matá-lo. Pelos vistos o rapaz não esteve para andar, ou se calhar deu-lhe uma vontade súbita e incontrolável. Mas não, se assim fosse poderia ter apanhado e limpado. Aparentemente não fez nada disso.
Mais um cão com sarna. Creio que é sarna. Infelizmente é muito frequente entre os cães de São Tomé e Príncipe. Pegam uns aos outros, e a situação torna-se muito complicada. Efetivamente é um horror diário assistir a isto. Esta infeção é causada por ácaros e existem vários tipos de sarna, algumas contagiosas para os humanos. Creio que toda a gente percebe que ter um problema de pele que causa grande comichão e feridas devido ao coçar é um horror, seja para humanos ou animais. É premente começar a tomar conta disto, não só pelo sofrimento do animal, como também por questões de saúde pública. O tratamento passa normalmente pelo uso de shampoos e cremes, vejo nas publicações especializadas.
Voltei a encontrar o guia Nelito do Bom Bom (que estava ontem no restaurante, ao almoço), o qual esperava precisamente o transporte para o Bom Bom, juntamente com esta rapariga à esquerda. Vai trabalhar e tirou-me esta foto. Repare-se que já tenho um lenço de papel preso na sandália, para afastar a tira da sandália da ferida. O penso que coloquei esta manhã já saiu do lugar, com a caminhada a subir – pois vim a maior parte da subida a andar com a bicicleta pela mão. E com esta humidade não há penso que aguente. Começar logo de manhã com a ferida meio a descoberto não é boa onda, mas agora não vou voltar para trás para colocar outro penso!!
E foi aqui nesta zona que os três atletas com quem me cruzei na cidade, passaram para baixo. Já foram até não sei onde, e já estão a voltar.
Cá está o fotógrafo, o guia Nelito do Bom Bom.
O caminho para o Infante fica ali mesmo, naquela floresta.
Chegada ao Terreiro Velho, e agora o GPS não aponta para um caminho certo. Parece que manda virar à direita e assim fiz.
Esta placa anuncia o trilho TR3. Diz “Trilho Recomendado (TR3) Roça do Infante”. 20 Km, 8h. Mas eu não vou fazer este trilho, o meu GPS tem outro trajeto ligeiramente mais pequeno, que fica antes do Pico Dois Dedos, naquela curva onde estão os binóculos de baixo. Pelos vistos o Maps.me não tem o caminho até à Roça, só tem até ao Infante D. Henrique, seja lá isso o que for – e é o que vou descobrir. Supostamente terá gente e casas. Mas estes 20 km da placa não estão corretos. Se o GPS indica que são 15 km desde a cidade até à zona dos binóculos, como é que são 20 km desde a entrada do Parque, no Terreiro Velho, por mais aquele pedaço final até à Roça? Este trilho não deve passar dos 12 km. Ou então os dois GPS que transporto, ligados a satélite – um deles é um Garmin – não estão a funcionar bem. Ora entre dois GPS ligados a satélite, e uma placa de madeira espetada no chão, tenho tendência para confiar mais no satélite.
Entretanto, posteriormente, descobri no website do Parque Natural do Príncipe a indicação de que este trilho tem 14,6 km¹. Continua a parecer-me muito, mas já se aproxima mais dos valores dos dois GPS, os quais batem sempre certo um com o outro.
Afinal o caminho não é para a direita. Vim parar aqui, mas não há saída. Foi uma mulher, de uma destas casas, quem veio em meu socorro. Eu disse-lhe que quero ir em direção ao Infante D. Henrique e ela levou-me até ao caminho certo. Afinal era à esquerda, na foto de cima com a placa do Terreiro Velho.
Aqui começa o Parque Natural do Príncipe. Ora muito bem. É o meu primeiro contacto com ele. Este Parque chama-se “Obô”, que significa “floresta densa”.
(Mal sabia eu o que me esperava… tão inocente que eu ainda era, quando tirei esta foto).
¹ “Infante D. Henrique” (s.d.). Parque Natural do Príncipe. Página consultada a 19 Setembro 2019,
<https://pnaturalprincipe.wixsite.com/pnprincipe/infante-d-henrique>