087 – São Jorge, 25º dia – Pico da Esperança
Hoje é sábado, 25 de julho de 2020.
O taxista Manuel vem buscar-me às 6h45 para levar-me ao pico mais alto da ilha de São Jorge: o Pico da Esperança, com 1053 metros de altitude. A partir daí eu descerei até à ponta esquerda da ilha: o Farol dos Rosais.
Quando acendi a luz, hoje às 5h20, ouvi cagarros a cantarem. Eles são atraídos pela luz, conforme expliquei na crónica 54. Pelos vistos desperta-os e cantam. Já na ilha do Pico aconteceu o mesmo.
São 6h43. Saio para a rua. O taxista Manuel estará aí a chegar. Vou espreitar o que se passa aqui tão cedo.
Então os meus bolos da Urzelina, oferecidos pelo alojamento, é daqui que vêm.
A Ana Bela está a atender, o snack-bar tem o seu nome, será a dona, portanto.
E aqui está uma cliente habitual chamada Graça, virei a saber amanhã. Todos os dias os rituais repetem-se. Eu própria irei aparecer aqui amanhã outra vez, e dessa vez já perguntarei à Graça como se chama.
Levam todos com flashes antes das 7 da manhã, e pacientemente aturam-me. Mais uma turista, pensarão, temos de ter paciência.
Estes canudos são um doce típico daqui. São de açúcar, ou caramelo, já não me lembro. Também há umas queijadinhas de coco. Agora estou cheia e não quero ir com comida na bicicleta; terei que cá voltar para provar pelo menos as queijadinhas.
Ali ao fundo já está o taxista Manuel, que vem beber um cafezinho antes de entrar ao serviço.
Finalmente uma foto de frente do Manuel, ali todo descascado às 7 da manhã. Tirou a máscara da cara, a meu pedido. Os três bancos de trás já estão baixos, e a minha bicicleta já cabe toda dentro do carro.
O Manuel nasceu numa povoação chamada Queimada, ao lado de Velas, aqui na ilha de São Jorge. Vai fazer 70 anos daqui a 4 meses, em novembro. A sua mãe ainda é viva e tem 98 anos.
O Manuel faz questão de mostrar-me este miradouro. E mostra-me como devo empoleirar-me para ver bem.
O Manuel viveu 12 anos na Califórnia e noutra terra que percebi “Rodalha”, o estado mais pequeno da América, disse-me. Fui investigar na internet qual é o estado mais pequeno, e vi Rhode Island. Teve um problema nas costas, recebeu uma indemnização e voltou para a ilha de São Jorge. A primeira mulher está na América casada com outro homem, e o Manuel também está atualmente casado com uma mulher micaelense, ou seja, da ilha de São Miguel. Há mais de 30 anos que estão juntos. Em 1990 veio para aqui. Ia fazer 40 anos de idade. Na América teve muitos trabalhos: cortar relva, limpar num restaurante de hambúrgueres. Sabia falar inglês, agora esqueceu-se. O dinheiro da indemnização deu para assentar a sua vida, comprar um táxi.
Ali em baixo é a Urzelina, diz-me. Eu ainda não conheço bem a povoação, não consigo identificar nada. Mas ali aquele canto da piscina era onde o pescador ia ontem pescar e eu não consegui segui-lo devido ao terreno vulcânico agreste. Não faço ideia se a minha casa se vê daqui.
Do outro lado é a ilha do Pico.
Pico, o Titã, está tapado pelas nuvens.
Agora o Manuel pára o carro e diz para eu tirar uma fotografia a esta santa. Pronto, faço-lhe a vontade.
– Bom dia, Titã.
– Bom dia, Rute.
Cheguei ao meu destino, o Pico da Esperança. O taxista Manuel vai-se embora em marcha-atrás. São 7h36. Foram 17 km, 20€.
A minha localização está identificada pela seta azul. O meu destino está identificado pela bandeira axadrezada. Nesta coisa tão comprida – 53 km de comprimento e 8 km de largura – consegui descortinar este caminho, fácil, a descer. Arrisco um percurso pedestre, dado que quero caminhos rurais. Também poderia escolher um percurso para bicicletas (no topo da imagem vê-se uma bicicleta – bastaria clicar aí), mas esta aplicação, o Maps.me, manda-me por estradas, nesse caso, e eu não quero.
Na linha azul em baixo podem ver-se as subidas e descidas que me esperam. Ali a meio vou ter uma subida.
28 km não é nada. Em Lisboa, aos domingos de manhã faço 40 ou 45 km, a maior parte à beira Tejo. Estes 28 km não são nada. A questão é que eu não vim aos Açores fazer corridas de bicicleta. O objetivo é parar, ver, contemplar, falar com as pessoas, se possível conviver com elas. Estes 28 km poderão traduzir-se num passeio de dia inteiro, portanto. É uma incógnita. Vamos ver como corre o dia de hoje!
Uma cratera. Com imensas rãs a coaxar. Só mesmo estando aqui para ouvir o cantorio. E sentir o cheiro da vegetação.
Li o seguinte no Centro de Interpretação dos Vulcões:
A ilha de São Jorge é caracterizada pela sua forma alongada (é a segunda maior ilha em comprimento a seguir a São Miguel), por um vulcanismo exclusivamente basáltico, em sentido lato, por não possuir um grande edifício vulcânico central e por, ao invés, apresentar-se como uma extensa cordilheira vulcânica, constituída por cerca de 350 cones, na sua maioria cones de escórias e escoadas lávicas basálticas associadas. Para além do controle tectónico regional exercido na configuração da ilha, são de realçar as muitas fajãs, detríticas e lávicas, existentes na base das altas falésias costeiras da ilha.
Ocorreram erupções históricas nesta ilha em 1850 (em três centros eruptivos diferentes) e em 1808, enquanto que em 1964 ocorreu uma erupção submarina ao largo das Velas.¹
Recordo o significado da palavra “fajã”: terra baixa e plana resultante de escoadas de lava que penetraram no mar.
Ali em baixo, pelo que vejo no mapa, desconfio que é uma povoação chamada Norte Grande. Mas não tenho a certeza.
A placa diz “Em memória das vítimas do acidente de aviação em 11 de dezembro de 1999” e mostra o nome das 35 pessoas que morreram. Algumas letras e linhas já caíram. Leio o seguinte na internet (e adapto para a data de hoje – o acidente foi há 21 anos, à data desta viagem, julho de 2020):
O Voo SP530 da SATA Air Açores não chegou ao seu destino há 21 anos atrás. No percurso Ponta Delgada – Flores, estava prevista uma escala no Aeroporto da Horta, ilha do Faial. O dia era de mau tempo. Estávamos a 11 de dezembro de 1999. Eram 9h20 quando o ATP (de nome “Graciosa”) da transportadora aérea açoriana colidiu com o Pico da Esperança, na ilha de São Jorge, vitimando todos os passageiros e tripulação, num total de 35 pessoas.
O Relatório da Comissão de Inquérito ao acidente, divulgado pelo Instituto Nacional de Aviação Civil concluiu que o voo foi planeado para uma rota direta ao Aeroporto da Horta, tendo a aeronave efetuado um desvio “sem que a tripulação se apercebesse”, até que começou a cruzar a linha da costa Norte de São Jorge, onde viria a embater.
A tripulação “estava plenamente convencida” que a aeronave se encontrava sobre o Canal São Jorge/Pico e a sua atenção estava mais concentrada nas más condições meteorológicas da altura.
Após soar o alerta de impacto, 3 segundos antes do primeiro impacto, o co-piloto alerta para o facto de estarem “a perder altitude e em cima de São Jorge”. Apesar dos pilotos terem aumentado a potência dos motores, a manobra foi “insuficiente para ultrapassar o obstáculo”. A manobra foi “insuficiente” para evitar a colisão, que causou uma violenta explosão e deixou o avião totalmente destruído.
Depois de descolar, às 8h37, do Aeroporto de Ponta Delgada, o “Graciosa” fez 34 minutos de voo depois do seu último contacto com terra. Só o estrondo e o intenso cheiro a combustível é que alertaram um pastor que, muitos metros abaixo, foi procurar forma de contatar com as autoridades para alertar para o facto de algo de anormal ter acontecido no cimo do Monte Pelado.
A conclusão do Relatório indica que a falta de respeito pela altitude de segurança, uma “navegação estimada imprecisa” e a “não utilização correta do radar de tempo” foram as principais causas do desastre. As más condições meteorológicas nesse dia – céu muito nublado, vento moderado a forte, provocando acentuada turbulência – e a inexistência de meios autónomos de navegação a bordo do avião (por exemplo, uso do GPS), que pudessem determinar a sua posição com rigor, constituíram fatores que contribuíram para o acidente.
Quanto à aeronave sinistrada, concluiu-se que “estava em condições de navegabilidade, de acordo com os regulamentos e procedimentos aprovados pela autoridade aeronáutica” nacional.
Segundo a Associação Portuguesa de Pilotos de Linha Aérea, o fator que contribuiu para o acidente com o avião da SATA foi “a deficiente qualidade e quantidade de infraestruturas de apoio à navegação aérea”.
A tripulação era constituída por Arnaldo Mesquita e António Magalhães, João Portugal e Emanuel Medeiros. O piloto tinha mais de 20 anos de voos inter-ilhas, sendo um dos muitos valentes pilotos da SATA, por todos reconhecidos como “pilotos de primeira linha, já que trabalham em condições adversas”.²
A placa indica: “O Morro Pelado constitui um cone de escórias basálticas, onde está situado o Algar do Montoso (ou Algar do Morro Pelado), o algar vulcânico mais profundo do arquipélago dos Açores, com 140 metros de profundidade. Esta cavidade vulcânica apresenta duas aberturas, uma das quais é usada para se aceder ao seu interior, onde existem duas salas sobrepostas, sendo a inferior composta por uma sala de grandes dimensões, com 150 metros de comprimento, 70 metros de largura e uma altura aproximada de 50 metros.. No chão destas salas existem grandes blocos rochosos, resultantes do desabamento das paredes e do teto do algar. Este abriga diferentes comunidades de espécies cavernícolas, destacando-se o escaravelho endémico Trechus isabelae, perfeitamente adaptado às condições de pouca luminosidade deste habitat.”
Dadas as suas dimensões e caraterísticas, estas cavidades vulcânicas devem ser exploradas apenas por espeleólogos experientes e na posse de material adequado.³
Um carro veio deixar este agricultor aqui na serra. No silêncio e nas brumas, ouvi o carro logo muito longe. Ele desceu-se, despediu-se do condutor e veio para aqui. No meio das brumas, nenhum dos dois me viu. Eu estava parada a observar. Afinal de contas está tudo deserto, convém eu estar atenta. Ao perceber que ele ia para as suas terras, gritei: “Bom dia!”. E ele deu um salto. Coitado, também não estava à espera que neste deserto, neste silêncio, no meio das brumas, aparecesse uma mulher de bicicleta. Apanhou um susto. São agora 8h20. Vai ver as vacas?, perguntei-lhe. Posso ir também? Ele disse que sim. É muito longe? Sim, ainda é um pouco longe, respondeu-me. Então é melhor não. Não posso pôr-me com grandes caminhadas, tenho um dia longo pela frente. Expliquei-lhe isto, que quero ir até ao Farol dos Rosais, e sendo longe já não o acompanho. Agradeci-lhe e despedimo-nos.
Ao descer a montanha, logo nos primeiros cem metros vejo estas vacas. Ai!… será que são estas? Mas estas estão perto!
Voltei para trás. Tirei os nós da corda e entrei, fechando a cerca novamente.
E agora? Nem vacas nem agricultor. Não vejo nada. Não sei deles. Pior: ouço um cão a ladrar. O cão já detetou a minha presença, certamente através do cheiro. Pisguei-me rapidamente. Voltei para o portão, desamarrei os nós da corda, desta vez atados por mim própria, sempre a olhar para trás – ainda aparece aí um cão a correr e eu dentro de propriedade alheia. Saí. Voltei a atar a corda. Ufa.
O telemóvel está a estrear um saco do pão da Vera, da ilha do Corvo. Estes pequenos saquinhos dão jeito. E não está bem a chover, é mesmo o nevoeiro, tão cerrado, que está a molhar-me o telemóvel.
Estava aqui uma carrinha de tabuleiro aberto com um homem e provavelmente o filho a encherem um garrafão de água. Eu travei e cumprimentei: Bom dia. Eles ficaram especados a olhar e não disseram nada. Eu tentei meter conversa: “Então estão a abastecer-se de água?“. Passada a surpresa inicial, eles riram-se, meteram-se na carrinha e foram-se embora, sem nada dizer.
Esta foi insólita. É assim tão estranho uma mulher a andar de bicicleta no meio das brumas açorianas? Também se assustaram ou quê?
¹ “Ilha de São Jorge” (s.d.) Placa exposta no Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos, Faial, 2020.
² “Há 19 anos o Pico da Esperança foi a última paragem do voo SP530” (2018, 11 dezembro). Rádio Club de Angra. Página consultada a 19 janeiro 2021,
<https://www.rcangra.pt/noticia.php?id=274>
³ “Cordilheira Vulcânica Central” (s.d.) SIARAM – Sentir e Interpretar o Ambiente dos Açores. Governo dos Açores. Página consultada a 19 janeiro 2021,
<http://siaram.azores.gov.pt/vulcanismo/Planalto-Central/_texto.html>