078 – Pico – Descida & a Caminho do Museu da Indústria Baleeira

Bebo um gel energético antes de iniciar a descida.

Agora que eu vou embora, estão a chegar outros dois caminhantes. Cumprimentei-os, quando nos cruzámos. São um casal da Alemanha, dos seus 38 anos.
São agora 11h50.

O casal alemão a subir. A única maneira de perceber-se o tamanho do piquinho, que nas fotos parece tão pequeno, é compará-lo com o tamanho das pessoas.

Também subi a montanha mais alta de Espanha e de todas as ilhas do Atlântico: o vulcão Teide, na ilha de Tenerife, em 2011. O Teide tem uma altitude de 3.718 metros e, à semelhança do Pico (que tem 2.351), também é um estratovulcão, ou seja, um vulcão em forma de cone, formado pelo magma extravasado. Não escrevi crónicas, nessa magnífica viagem de dez dias por Tenerife. Dessa vez fiz a subida acompanhada do meu então namorado. Fomos os dois sozinhos, também sem guia. Começámos a cerca de 2.300 metros de altitude, e fomos mesmo até ao pico, o qual exige autorização prévia do Parque Natural. A passagem para o pico é proibida, o Parque Natural emite algumas licenças, poucas, as quais tive de pedir com bastante antecedência, para não se esgotarem.
Recordo-me que a subida foi muito difícil porque o oxigénio começou a rarear com a altitude. A 3.718 metros de altitude – que efetivamente corresponde a cerca de 8.000 de altitude desde o mar (a placa do Parque Natural indicava 8.310 metros de altitude no total) há menos oxigénio. Lembro-me de respirar desalmadamente, em busca de oxigénio, à medida em que ia subindo. E ao chegar ao topo o cheiro a enxofre é fortíssimo, e há fumarolas. Imaginem: sem oxigénio, estafada e a respirar o malcheiroso enxofre. Mas cheguei!
Dessa vez seria impossível, digo eu, voltar para baixo a pé. Lá em cima há uns autocarros que levam as pessoas para baixo. Também existe um teleférico. Se eu lá voltar, já vou de teleférico, isga-se. E qualquer dia também haverá um teleférico aqui no Pico.

Estive igualmente no topo do vulcão Etna, em Itália, na Sicília. Nem me lembro em que ano. Talvez no ano 2000. Foi num cruzeiro pelo Mediterrâneo, de uma semana, e também não escrevi crónicas. O vulcão Etna é um dos mais ativos do mundo: a última erupção foi em 2019 (eu estou a escrever estas crónicas em 2020). E é um dos maiores da Europa, com 3.350 metros de altitude.
Enfim, todos eles são lindos. Lindos vulcõezinhos, alguns capazes de destruição total e extinção em massa. Estes piorzitos andam sobretudo pela América do Sul e do Norte, e pela Nova Zelândia. Ainda me falta visitar estes piorzitos. Eles que não se lembrem de entrar em erupção durante a minha futura visita.

E como a minha última barra de proteína. Trouxe duas, e um gel energético. Recordo que cada barra pesa 60 gramas, e tem 22 gramas de proteína. É como comer um bife. Hoje já comi dois bifes, portanto.

Este piso – chamado por vezes de “biscoitos” pelos açorianos, por se parecerem com os biscoitos torrados duas vezes que os pescadores levavam para o mar, muito duros, é do piorio. Ao descer, pôr um pé em cima disto significa ir a escorregar por aqui abaixo. Caí três ou quatro vezes, ao longo da descida. Fizeram-me falta as luvas da bicicleta. Deva ter trazido o capacete e as luvas, como é hábito. Numa das vezes sentei-me numa pedra com tamanha inclinação, que caí para o lado. A coisa foi mal planeada, claro. Fiquei sentada na pedra ao lado, depois de resvalar. E o cotovelo a sangrar. Percebi claramente o nome dado a esta pedra: “pedra aa”, conforme expliquei na crónica 67. Os pescadores andavam descalços, e ao andar em cima desta pedra, áspera e cortante, a única coisa que podiam exclamar era “ah… ah” – porque magoa bastante.

– Então, Rute, caíste?
– Sim, passarinho. Mas estou bem.
– Querias ter umas asas como as minhas?
– Sem dúvida, passarinho, gostava muito.

– Vai devagar. És uma bípede humana, tens que ir devagar.
– Sim, passarinho, estou a ir com muito cuidado.
– Vou levantar voo para tu veres como é bom.
– Voa, passarinho. Eu voo muitas vezes em sonho, sei qual é a sensação.
– Sonhas que estás a voar?
– Sim, passarinho, tenho esse sonho frequentemente, há muitos anos.
– E bates as asas?
– Não tenho asas, passarinho.
– Então como é que voas nos sonhos?
– O meu corpo voa, simplesmente.
– E bates os braços?
Ri-me. Só me faltava este interrogatório, agora.
– Não, passarinho, pelo que me recordo, nos meus sonhos não bato os braços. Simplesmente voo. Mas recordo-me que tenho que fazer força. Voar é algo que exige força. Sobretudo quando voo a pique, para cima.
– A pique, para cima?! Costuma ser a pique, para baixo.
– Pois não sei, passarinho, não tenho controlo nos sonhos. Eu voo a pique, para cima. E também voo a pique para baixo. E também a direito. Efetivamente já voei de todas as maneiras. Uma vez sonhei que andava outra criatura a voar a perseguir-me. Eu voava a toda a velocidade entre as árvores, entre os ramos, a fugir, tinha de ter grande destreza a voar, e vinha uma criatura também a voar atrás de mim, em perseguição.
– Ah são sonhos bons e sonhos maus, sempre a voar?
– É verdade, passarinho. Normalmente são bons, mas este foi mau. E sempre a voar.
– Não sabia que os bípedes humanos podiam sonhar que voam.
– E tu nunca sonhaste que andavas como os bípedes humanos?
– Mas eu ando como os bípedes humanos. Agora estou a andar.
– É verdade. Então nunca sonhaste que andas como um gato, em quatro patas?
– Não, nunca sonhei com nada disso.
– Bom, passarinho, tu moves-te da melhor maneira possível, não precisas de sonhar com nada. Vou prosseguir caminho.
– Adeus, Rute. Vou levantar voo para te inspirar.
– Adeus, passarinho, vive bem.

Vou entrar na twilight zone outra vez. Devo ter dado umas voltas extra, na subida, porque o caminho supostamente era mais pequeno.

Cheguei à Casa da Montanha, e para grande surpresa minha disseram-me que eu tinha que pagar a subida. Não fazia ideia. Quanto é? – perguntei. 25€. Credo! Eu não me informei sobre nada, antes de vir, nem nunca imaginei que se pagasse. Vim e pronto, como em todas as outras ilhas. Já subi sei lá quantas montanhas e crateras nas restantes ilhas, e nunca paguei nada. Esta tenho que pagar porquê? Ninguém me ajudou. Fui sozinha e tinha GPS. Por causa dos marcos a assinalar o caminho? Nas outras ilhas também segui os marcos, e nunca pediram dinheiro. Estranho. Também subi à Serra da Estrela, à Serra do Gerês, e a uma porção de picos na Madeira, onde passei um mês de férias também, e nunca me cobraram nada. Nem na montanha mais alta de Espanha – o vulcão Teide. Também não paguei nada. Só tive que obter uma licença (grátis!). A Montanha do Pico é propriedade privada? Que coisa mais bizarra. Querem fazer dinheiro com os turistas, compreendo. Todas as fontes de receita são bem-vindas, está visto.
Anda ponderei na hipótese de fuga. Monto na bicicleta e vou-me embora. Que venha a polícia com as sirenes ligadas atrás de mim. Eu meto-me pela floresta, com a minha bicicleta de montanha, e o carro da polícia já não consegue passar. Um verdadeiro thriller policial. Mas depois tive pena do rapaz, coitado, não tem culpa nenhuma disto, eu só iria causar-lhe problemas. Paguei.

Saí lá de cima às 11h45, pelo que levei 2h45 a descer. Vou para São Roque do Pico, onde estou alojada, mas não vou direta para casa – nem para o restaurante. A prioridade é o Museu da Indústria Baleeira. Amanhã a minha rota será outra. Se eu encontrar alguma comida rápida – feita – pelo caminho, comerei. Caso contrário, o museu é prioritário. Mas eu estou bem, com os dois bifes que comi, bem como o gel energético. É uma alimentação própria para desportistas, para esforço físico intenso, não é comida propriamente leve.

A minha posição está identificada pela seta azul. O meu destino está identificado pela bandeira axadrezada. E felizmente sugere-me um percurso fora da estrada principal – aquela reta enorme que está ali ao centro, e que seria uma volta grande. Manda-me já a corta-mato, que maravilha.

A ilha do Faial, lá à frente, e vaquinhas. Então são estas as vaquinhas da ilha do Pico. Serão estas que vão ser enviadas para Marrocos, vivas, em navios, para serem abatidas à chegada?

Há vacas açorianas que são expedidas por navio para países longínquos, como Marrocos ou Israel, e passam vários dias em más condições dentro desses navios, e que volta e meia avariam, com os animais lá dentro – sujeitos a altas temperaturas quando é verão – ou que são suspensos por atividades irregulares e por maus tratos aos animais, os quais vão amontoados uns em cima dos outros, com dificuldade de acesso a comida e bebida, num navio apinhado com dezenas de milhares de vacas ou ovelhas. Chegam feridos, desidratados, cheios de sede, cegos com os cornos uns dos outros, mortos, e cobertos de crosta fecal, pois as camas não são mudadas durante a viagem. Ver os vídeos destes transportes é um horror. Um dos primeiros programas de televisão a alertar para a gravidade deste problema foi o “Sexta às 9”, cuja reportagem pode ser vista aqui. Depois da sua vida tão tranquila nos campos açorianos, sujeitá-las a uma pré-morte destas, é um horror. De acordo com um relatório emitido pelo Ministério da Agricultura, é apenas a ilha do Pico quem exporta animais vivos para Marrocos. O objetivo é serem abatidos à chegada de acordo com os rituais religiosos destes países.
A União Europeia tem estado atenta a este flagelo e criou recentemente uma Comissão de Inquérito para averiguar o que se passa efetivamente.
Eu como carne – eu não sou vegetariana – mas não impede de estar atenta às condições em que os animais são tratados na vida – e na morte. Nem tudo na vida é dinheiro e lucro, meus amigos.

A pequena ferida no pulso foi feita na descida do Pico. Também fiquei com outra no tornozelo.
Esqueci-me de comentar a questão da água: a minha água acabou-se na descida, no marco 10. Mas estava frio e nublado, por essa altura, pelo que não me custou nada. E quando cheguei à bicicleta, tinha lá água à minha espera. Um cantil cheio de água.

A chegar! Ainda perguntei no café aqui ao lado se servem almoços ou comida. Não, não servem.

Xiça, parece que está apontar o arpão ao homem.

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