072 – Pico – Museu dos Baleeiros
A taxista Alzira, que irá aparecer nas fotos abaixo, esperava por mim no porto. Foi um tanto ou quanto bizarro, pois a Alzira estava a olhar para mim, sentada no carro, mas não vinha ter comigo. Será que chegam assim tantos passageiros com uma bicicleta, ao porto de São Roque, que ela não tenha a certeza que sou eu, a sua passageira? Eu estou com bagagens e bicicleta. Faço uns metros com a bagagem, e tenho que voltar atrás para buscar a bicicleta. Vou andando assim aos poucos, para trás e para a frente. Até que me cansei e chamei-a, ao longe: É a Alzira? Importa-se de vir ajudar-me? E a Alzira finalmente pôs o motor do carro a trabalhar e veio ter comigo. Metemos tudo dentro do carro, e agora trouxe-me ao supermercado, a meu pedido. Ainda temos de parar a seguir noutro local para eu levantar a chave da minha casa.
Neste alojamento não tenho pequeno-almoço incluído.
O pão que comprei na ilha do Corvo, e que foi comigo para o Faial, acabou por ir fora, pois já estava bolorento. Comprei outro agora. E só mais tarde me lembrei que esqueci-me de comprar água.
Segunda paragem para eu fazer o check-in do alojamento e levantar a chave. A funcionária que me atendeu (dentro desta casa) explica à Alzira (aqui nesta foto) onde fica a minha casa.
São 10h28. Fizemos 2,7 km no táxi, duas paragens pelo caminho, e paguei 10€.
A Alzira tirou-me esta foto. Eu pedi-lhe para esperar por mim. Vou apenas guardar as bagagens dentro de casa, e parto já com ela. Destino: museu dos Baleeiros, numa povoação chamada Lajes. A bicicleta fica em casa. A seguir do museu, depois de almoço, tenho um passeio de barco marcado ali mesmo nas Lajes, para avistar baleias.
Nem vi a casa nem nada, pousei as coisas à entrada e partimos.
A Alzira não me deixa ir à frente. Tem medo da Covid-19. Fala pouco. Nasceu aqui na ilha do Pico e sempre viveu aqui. Falta-lhe conhecer 4 ilhas. Agradeci-lhe a paciência, das várias paragens, ela respondeu que gosta muito do que faz. Parou no miradouro de São Roque para eu tirar uma foto:
São 11h04. Fizemos 24 km, 20€.
O lindo museu dos Baleeiros espera por mim. Estou impaciente por conhecê-lo. Tenho perdido alguns museus de baleeiros por estarem fechados devido à pandemia, nomeadamente na ilha das Flores e na ilha do Faial. Nas Flores acabei por não ficar com a certeza se estava fechado ou não, só sei que na internet dizia fechado, e ninguém atendeu as duas chamadas que fiz, em dois dias diferentes. Devia estar fechado.
Pago os 2€ do bilhete e entro.
O bote baleeiro açoriano, adaptado das canoas que seguiam a bordo dos grandes navios baleeiros americanos no século XIX.
O cachalote é o maior mamífero com dentes que alguma vez existiu à face da Terra, com um cérebro que excede todos os outros conhecidos, pesando até 9 quilogramas, capaz de mergulhar mais fundo nas águas geladas dos oceanos, até mais de 2.000 metros de profundidade.
Respira duas, três vezes por minuto, oxigenando cerca de duas toneladas de sangue que lhe circulam nas veias. Quando mergulha, esse sangue enriquecido de oxigénio, permite-lhe permanecer debaixo de água mais de uma hora.
Possui mais de 20 pares de dentes , entre os 8 e os 20 centímetros de comprimento podendo pesar cada um, mais de um quilo [nota: recordo que peguei num dente, na ilha do Corvo, e fotografei-o, na crónica 52, onde comentei precisamente que era pesado]. O seu bramido, que ultrapassa os 230 decibéis, é o som mais poderoso que algum animal conhecido consegue produzir.¹
Ferramentas para cortar e desmanchar as baleias.
Repare-se nas adaptação das palavras inglesas para o português. Conforme referi na crónica 16, quando passei pelo Bairro dos Baleeiros na ilha de São Miguel, a baleação nas águas do arquipélago dos Açores iniciou-se na segunda metade do século XVIII, com a chegada dos navios baleeiros dos Estados Unidos da América, nomeadamente oriundos de New Bedford e de Nantucket. Arregimentavam homens aqui nas ilhas para completar as suas tripulações, e foi com eles que os açorianos aprenderam as técnicas e o domínio dos instrumentos, patente no uso do próprio vocabulário baleeiro, quase totalmente de origem anglo-saxónica.²
Na sociedade fechada do arquipélago, os açorianos viam nos cascos dos navios o reflexo de um mundo novo, perdido em abundância e aventura, e embarcavam. Assim que tocavam os porões gordurosos das baleeiras, mudavam de nome: os Rosa passavam a Roger, os Freitas a Frates, os Machado a Marshall. Pequod, o navio baleeiro de Moby Dick, esteve ao largo dos Açores, mas não fez escala. Herman Melville, autor do livro, esclarece que «não poucos destes caçadores de baleias são originários dos Açores, onde as naus de Nantucket que se dirigem a mares distantes atracam, frequentemente para aumentar a tripulação com os corajosos camponeses destas costas rochosas. Não se sabe bem porquê, mas a verdade é que os ilhéus são os melhores caçadores de baleias». Estes homens, a maioria deles rapazes de 13 e 14 anos, só falavam português, mas começavam imediatamente a olhar o mar em busca do repuxo das baleias. Uma das primeiras frases que aprendiam em inglês era She blows, «ela sopra».³
Num museu nos EUA, em New Bedford, dedicado à caça à baleia, existe uma ala açoriana. Aqui descobre-se que o primeiro português numa baleeira norte-americana terá sido Joseph Swazey, no ano de 1765. O primeiro capitão terá sido o faialense Frederick Joseph, líder do Bark Perry a partir dos 23 anos. Algumas décadas depois, um florentino, Nicholas R. Vieira, chegou a capitão e ficou conhecido por ser «um homem invulgarmente bonito, com olhos azuis faiscantes e um ar gentil que o transformava um preferido entre as senhoras.» Um dos mais antigos registos pertence a Joseph Vera, das Lajes do Pico, casado com uma irlandesa. Em exposição no museu estão dois grandes retratos a óleo do casal, que foi dono de um armazém de abastecimento de baleeiros. ³
De acordo com o professor universitário norte-americano Donald Warrin, que analisou o papel dos portugueses na baleação americana, entre 1765-1927, «se no século XVIII a presença portuguesa nas baleeiras americanas rondava quarenta por cento, a partir de 1920 essa presença aumentou para mais de sessenta por cento e a maioria dos barcos passaram a ser capitaneados por portugueses».
Ao longo dos anos, os açorianos tornam-se conhecidos por manter coesa e extensa a rede familiar. Pais, filhos, tios, sobrinhos e primos cruzavam-se a bordo da mesma baleeira. Duas famílias destacaram-se: os Edwards e os Mandlys. Ao longo de quarenta anos, Edward, o patriarca da família com este nome, colecionou histórias que adorava partilhar, como a do dia em que foi dado como morto. Edward estava na ilha de Saint Kitts, nas Índias Ocidentais, quando um ataque cataléptico, seguido de febres reumáticas, o deixou imobilizado durante trinta horas. Nem um tremor, nem um suspiro. Todos, mesmo o seu médico, o deram como morto. Apenas a mulher lutou contra o regulamento que proibia a manutenção de um corpo a bordo durante a noite e conseguiu um dia extra antes de o corpo ser enterrado. No fim do prazo, desesperada, chamou um padre para dar a extrema-unção. Nesse momento, o religioso detetou minúsculos pingos de suor na testa do capitão. Joseph garantia que, embora não movesse um músculo, tinha estado sempre consciente.³
Nos navios a comida estava muitas vezes contaminada, não havia condições de higiene, dormia-se em espaços exíguos sem circulação de ar, e obedecia-se à autoridade total de um capitão com um código rígido, que não permitia, por exemplo, cantar ou assobiar. Este inferno flutuante provocava a deserção de muitos marinheiros americanos nas ilhas, mas os açorianos que refaziam a tripulação mostravam outra resistência. «Os oficiais tendem a favorecê-los devido à docilidade com que enfrentam comportamentos abusivos e más condições de alimentação, além de estarem sempre prontos a embarcar em longas viagens ao abrigo de contratos menos honestos, cujos termos podem ser alvo de reinterpretação de um momento para o outro. Alguns deles são, certamente, verdadeiras maravilhas de poder de encaixe e poder de parcimónia. As suas despesas por conta no cofre de bordo, referentes aos gastos menores durante a viagem, somam quase sempre quantias irrisórias, muito abaixo do consumo médio dos outros membros da equipagem. (…) Apesar de criados num país produtor de vinho, não manifestam geralmente grandes apetências para a intemperança.» Charles Nordoff, que esteve embarcado, destaca ainda outra característica. «Eles têm além disso um objetivo na vida, que nunca perdem de vista no trabalho duro das longas viagens, a esperança deles é que algum dia possam casar-se na sua ilha de nascimento, entre os amigos e os que lhe são queridos, e com as economias de anos de trabalho duro, passarem os seus últimos dias numa reforma serena».³
Foram estes homens, que nunca se desfizeram do sonho inicial de regressar às ilhas, que lideraram as primeiras tentativas da caça à baleia nos Açores. Chegaram, lançaram-se ao mar em pequenas embarcações de madeira e caçaram baleias à mão. A atividade dominou um século de cultura insular, que terminou em 1986, quando se caçou o último cachalote no arquipélago. Em 1957, a erupção do vulcão dos Capelinhos marcou o início de um surto emigratório que resultou no nascimento de uma nova ilha açoriana nas costas da Nova Inglaterra. Um século depois New Bedford voltava a acolher baleeiros açorianos. Durante décadas, estes homens dominaram a maquinaria das suas fábricas e manejaram as alfaias das suas quintas. Hoje, escondidos no interior das casas desta cidade nos EUA, contam aos netos as histórias do dia em que o avô caçou três cachalotes ou do momento em que uma baleia virou o bote.³
O Pico foi, provavelmente, a ilha onde a atividade baleeira teve maior expressão. A família de Aldemiro Machado, 75 anos, tinha uma casa perto da companhia dos botes, em São Roque do Pico. Um dia de Agosto, «já havia milho seco», faltou um homem para completar a tripulação. O oficial do bote, João de Brum Domingues, encarou o pai de Aldemiro: «Senhor Cladomiro, o seu pequeno pode ir?» «É um rapaz novo, não vai», respondeu o homem. O oficial acabou por responsabilizar-se por Aldemiro e lá foi o rapaz, poucos meses depois de ter completado 13 anos. O oficial, «um senhor alto e delgadinho», sentou-o ao pé de si. Quando o avisou para baixar a cabeça por causa de uma manobra, Aldemiro esquivou-se para evitar a pancada da retranca e, quando voltou a erguer-se, viu «um esguicho, uma coisa preta a deitar fumo» e exclamou: «Oh, oh, a baleia!» Aldemiro e o oficial ficaram amigos. João de Brum Domingues chamava-o «o meu menino.» Quando o picaroto completou 17 anos, o oficial sofreu um ataque no bote e morreu. Poucos meses depois, Aldemiro voltou ao mar. Estavam já longe da costa, quando alguém distinguiu uma baleia dirigindo-se a grande velocidade para o bote e gritou: «Atirem-se ao mar.» Aldemiro cumpriu de imediato a ordem e lançou-se no mar. Enquanto subia em direção à superfície do oceano, distinguiu uma massa preta. Bateu com a cabeça no cachalote e, quando este mergulhou, foi arrastado para as profundezas do oceano. O seu mundo desapareceu. Aos poucos, abriu os olhos e distinguiu uns contornos esbranquiçados e brilhantes, quase celestiais. Ainda atordoado perguntou: «Onde estou?» Nesse momento, sem distinguir qualquer rosto, ouviu uma voz. «Está tudo bem, sou médico, trouxeram-no para o Hospital da Horta, no Faial.»³
Mariano Barreiro, com 83 anos, micaelense, trabalhou na lavoura e na pesca, «mas quando havia baleia também ia». Não tinha outra solução. Com nove filhos, «eram 11 pratos de cada vez na mesa.» Nas vigias – pequenas casas feitas de pedra com uma visão privilegiada sobre o mar -, havia homens com binóculos à procura de baleias. Nos dias em que não se avistavam cachalotes, os homens pescavam, trabalhavam as terras, ajudavam na descarga do vapor ou ocupavam-se com a Banda Filarmónica e o jogo do dominó na sociedade. Apenas os mais afamados baleeiros conseguiam sobreviver de arriar à baleia. Mariano, que hoje vive em Massachusetts, nos EUA, fala com um terço na mão. Na sua freguesia de Santo António, nas Capelas, parte norte da ilha de São Miguel [ver crónicas 16 e 17 para Santo António e Capelas], a igreja ficava ao lado da Casa dos Baleeiros. Depois de Inês Gertrudes – a sua «mulher perfeita e boa de coração» – lhe desejar «Nosso Senhor vá contigo», ele ainda aproveitava para se benzer em frente à igreja. Por mais bonançoso que o mar estivesse, nos Açores rapidamente ele se enfurece e na memória de todos permanecia este ou aquele desastre, uma ou outra morte. O micaelense lembra como ia no bote, rebocado pela lancha, a pensar: «Como será que isto vai ser?» O bote parava a dois ou três metros do cachalote. Forçado pelo medo, reinava o silêncio. Em cada embarcação, seguiam sete homens. Ao trancador competia a estocada final e não lhe eram permitidas hesitações; ao mestre cabiam as ordens. Mariano era remador. «Íamos sentados, não víamos nada, só depois da baleia estar trancada. Um homem arrepia-se ao ver um bicho tão grande, maior do que a canoa.» A primeira vez que arriou à baleia, o seu bote teve sorte e apanhou três baleias. Mas, por vezes, as coisas corriam mal. Depois de arpoada, a baleia podia «cantar» – como os homens chamam aos demorados mergulhos das baleias – ou arrastá-los mar fora a uma velocidade de vinte ou trinta milhas por hora. Os olhos seguiam sempre pousados sobre a linha de manilha americana. Amarrada ao arpão e enrolada dentro de duas selhas, seguiam trezentas braças de linha, mas se a baleia fosse grande «levava a linha de três botes.» A arça é o fim da linha e era com pena que o último tripulante a cortava. Era uma baleia que se perdia mas uma tragédia que se evitava. Mariano recorda o dia em que um homem ficou preso na linha, arrastado para o fundo do mar e depois recuperado já sem vida. Na maior parte das vezes, a baleia vinha à tona da água antes que a linha acabasse, o bote aproximava-se e o trancador, com uma lança, fazia o animal sangrar. Quando «o repuxo era vermelho, da cor do sangue», a baleia estava certa.³
Perdi o Museu de Scrimshaw, no Peter Café Sport, na ilha do Faial, por pura distração. Eu nem sabia o que era Scrimshaw, nessa altura. Não conhecia este termo. Nem liguei. Se dissesse “baleia” algures ter-me-ia despertado mais a atenção. Mas felizmente tenho agora uma segunda oportunidade. Aqui também há uma área dedicada ao Scrimshaw.
Muito bom, este museu. Belíssimo. Cinco estrelas. Ainda há outro museu aqui na ilha do Pico – o da Indústria Baleeira, uma antiga fábrica. Também tenho que lá ir. Estão todos abertos.
Lá dentro vi ainda um belíssimo filme de 22 minutos sobre a caça à baleia. Não o encontro no YouTube, no entanto deixo outro filme igualmente bom, diria mesmo magnífico, narrado pelo Orson Welles, e filmado nos Açores em 1964: Barbed Water, de 45 minutos.
Este filme mostra imagens do arpoamento das baleias; mostra a vigia da baleia e o lançamento do foguete quando era avistada uma; o reboque da baleia para terra, e finalmente o seu desmancho.
A caça à baleia foi proibida e terminou em 1986. A Noruega, porém, opôs-se a esta proibição e manteve a caça. Atualmente o Japão tem vindo a caçar um número crescente de baleias também. Apesar do óleo de baleia não ter hoje valor comercial que justifique a caça, a carne da baleia é considerada um acepipe no Japão e na Noruega, pelo que a caça agora é cada vez mais dirigida para o consumo humano da carne. No caso do Japão, dada a escassez da oferta, o preço da carne de baleia atinge valores extremamente elevados, havendo uma procura crescente por parte dos consumidores. Daí que a pressão para a retoma da baleação comercial seja grande.¹
Muito mau. Uma desonra total.
São 12h04. É hora de procurar um local para almoçar. Às 14h tenho o passeio de barco. Coloquei aos funcionários do museu a minha pergunta habitual: onde é que há um restaurante bom e barato?
Posto de turismo.
Creme de brócolos, 1,5€.
O prato do dia é bacalhau com natas, mas eu optei por uma salada de polvo, 10€. Tambêm têm omeletes por 4 e 5€, e hambúrgueres com batatas fritas. Esta salada de polvo, todavia, caiu-me que nem ginjas.
¹ Texto retirado de placa exposta no Museu dos Baleeiros, Lajes do Pico. Julho de 2020.
² “Baleação” (s.d.). Wikipedia. Página consultada a 28 dezembro 2020,
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Balea%C3%A7%C3%A3o>
³ Soares, Alexandre (2011, 2 setembro) “Na pista dos baleeiros açorianos de Moby Dick”. Diário de Notícias. Página consultada a 28 dezembro 2020,
<https://www.dn.pt/revistas/ns/na-pista-dos-baleeiros-acorianos-de-moby-dick-1973731.html>