013 – São Miguel, 5º dia – Pico da Pedra
Hoje é domingo, 5 de julho. Despertar às 5h20.
Houve um ratinho durante a noite a comer algumas coisas do pequeno-almoço. A menina Rute dormiu uma sesta à tarde; às 11 da noite andava acordada, e deu-lhe fome, pois claro.
São 6h20, estou prestes a sair. Amanhece tarde, por aqui. Em São Tomé e Príncipe amanhece às 5h30, os dias começam mais cedo e eu começava a pedalar mais cedo também. No entanto às 5 da tarde já era noite. Aqui nos Açores anoitece às 9 da noite.
Hoje o destino é Santo António!
Vou arriscar novamente um percurso pedestre, em vez de percurso para bicicleta. Quero estar o mais longe possível de carros e estradas. Aqui não diz a altitude, mas eu sei que é quase plano. No caminho das bicicletas, pela estrada (que não fiquei com o print-screen), indicava que é praticamente plano.
Esqueci-me das luvas, lavei-as ontem e ficaram esquecidas a secar no terraço.
Estou a seguir o caminho pedestre indicado pelo Maps.me, recordo. No site da “Visit Azores” não há caminhos nenhuns para aqui. Será que só existem estradas de alcatrão? Não haverá caminhos de terra, mais tranquilos, para peões? Eu já nem digo para bicicletas.
O Maps.me vai-me dando estes pequenos desvios da estrada principal. Sempre que pode, manda-me sair da estrada principal, coitado. Aqueles caminhos para a direita (que normalmente se chamam “canadas”, aqui nos Açores) habitualmente não têm saída. A saída é voltar para cima pelo mesmo caminho, para a estrada principal.
São 7h15 e estou em Santana. Vão levar água aos bezerros, explicaram-me eles.
Aqui é a parte de cima da povoação Rabo de Peixe. No regresso irei passar pelo centro. Esta povoação ficará para sempre associada ao naufrágio em 2001 duma embarcação que transportava cocaína. Segundo se lê na internet:
A embarcação naufragou transportando, calcula-se, mais de 500 quilos de cocaína de uma pureza que atingia os 80%. A mercadoria afundou-se e mais tarde começaram a dar à costa, na pequena e pobre zona piscatória. A notícia correu depressa. Diz quem testemunhou que dezenas de pessoas acorreram ao mar numa autêntica “caça ao tesouro”. A polícia, mais tarde, afirmava que tinha recuperado 400 dos 500 quilos de cocaína perdida. No entanto, a julgar pela forma como o consumo da droga se generalizou na vila, muitos apontam que a quantidade de droga transportada pela embarcação naufragada era bem superior ao calculado.
Conta-se que era possível comprar um copo cheio de cocaína por 25 euros, um preço irrisório. Mas a quantidade de droga transportada pelo barco seria bem superior ao alegado: “A polícia sustentou que o iate transportava só 500 quilos, mas isso é um absurdo. O navio comportava até 3000 quilos de cocaína, e ninguém cruza o Atlântico cobrindo um percentual tão baixo do espaço disponível. Cem quilos de cocaína, mesmo com pureza excelente, não destroem uma geração”.
Nas três semanas que se seguiram ao incidente com a embarcação, foram contabilizadas 20 mortes e “dezenas de internamentos por intoxicações”. A verdadeira dimensão das consequências nunca foi calculada de forma exata.
Passados 19 anos, a ferida continua aberta.¹ Um serviço ambulante de atendimento a dependentes percorre semanalmente São Miguel para distribuir metadona aos heroinómanos. E, apesar de este parecer ser um problema diferente do relatado acima, um está na origem do outro. “A pureza da cocaína produziu um efeito catastrófico. O efeito da droga era tão feroz que as pessoas começaram a consumir heroína para conseguir dormir.” Assim Suzete Frias, então diretora da Casa de Saúde de Ponta Delgada, resume esse drama social. Surgiu então um problema novo na ilha: a dependência em drogas. “Os filhos de classe média-alta foram internados em clínicas de desintoxicação no continente; a classe operária procurou a heroína.”²
Na operação policial que se desencadeou depois do desembarque inesperado da enorme quantidade de cocaína, foi detido um cidadão italiano, Antoni Quinzi, depois de ter sido encontrada cocaína escondida no seu iate que coincidia com aquela perdida no mar.
Acabou por fugir do Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada dez dias depois, bastando para isso saltar o muro da prisão e colocar-se na parte de trás de uma mota que o esperava à beira da estrada.
Acabou por ser capturado 15 dias depois em São Miguel. Foi transferido para Coimbra e foi condenado a quase dez anos de prisão. Provou-se que o seu objetivo era dirigir o barco da Venezuela até às Ilhas Baleares em Espanha. Foi o único detido em toda a operação.¹
Aqui é Pico da Pedra.
Chama-se Eduardo, disse-me. São 7h51 e vai muito apressado não sei onde.
Há um grande movimento de tratores. Vou seguir este. Talvez o agricultor que vai a conduzir me leve a ver vaquinhas, e as suas lides do campo.
Pois o Francisco Aguiar – assim se chama, disse-me – vai precisamente para o portão onde eu estou parada a fotografá-lo. Nem preciso de segui-lo, já cá estou, portanto. Calhou bem.
Ofereceu-me bolachas e fruta, mas eu acabei de comer há pouco, ainda não me apetece. Agradeci.
O Francisco entrou com o trator pelas suas terras, e “Eu vou segui-lo na bicicleta” – disse-lhe eu. O Francisco riu-se. Então venha, respondeu-me. Vou buscar comida para as vacas – acrescentou. E ofereceu-me boleia no trator, mas não vale a pena, vou na bicicleta.
¹ “Documentário em Espanha dedica-se ao naufrágio que levou cocaína a Rabo de Peixe” (2017, 7 dezembro). Jornal Público. Página consultada a 28 setembo 2020,
<https://www.publico.pt/2017/12/07/culturaipsilon/noticia/o-naufragio-que-mergulhou-rabo-de-peixe-na-droga-vai-virar-documentario-em-espanha-1795290>
² Macarena Lozano e Rebeca Queimaliños (2017, 6 dezembro) “Como meia tonelada de cocaína extraviada destruiu um povoado português de 7.000 habitantes”. El País. Página consultada a 28 setembo 2020,
<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/01/internacional/1512112762_366610.html>